Descrição de chapéu 60 anos do golpe Folhajus

Verniz jurídico aproxima trama sob Bolsonaro de golpe de 1964

Tanto ato institucional da ditadura como minuta para reverter eleição de 2022 tentam dar aparência de legalidade a ruptura constitucional

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São Paulo

Artigos, incisos, "considerandos", menções à Constituição e uso de termos como "legalidade" e "Estado de Direito".

A linguagem jurídica das minutas de decreto encontradas na investigação que mira a trama golpista para manter Jair Bolsonaro (PL) no poder trouxe à tona semelhanças com os argumentos legais usados para justificar o golpe militar de 1964.

O desfecho, como se sabe, é diferente. Há 60 anos, João Goulart foi deposto e substituído por um governo não eleito. Em 2022, foi diplomado o presidente escolhido nas urnas.

Exemplar da Constituição queimado no STF nos ataques de 8 de janeiro - Gabriela Biló - 1.fev.2023/Folhapress

Mas em ambos os casos usou-se uma estratégia comum, avaliam estudiosos do período: a tentativa de dar aparência de legalidade a uma quebra da ordem constitucional.

A manobra não foi totalmente dissimulada em nenhum dos episódios. Tanto o Ato Institucional nº 1, de abril de 1964, como a minuta de estado de sítio encontrada com o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, reconhecem contradição com os ritos legais.

"Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o país", diz o preâmbulo do AI-1, ecoando o discurso dos militares de inserir a deposição de Goulart no contexto da luta contra o comunismo.

"Devemos considerar que a legalidade nem sempre é suficiente: por vezes a norma jurídica ou a decisão judicial são legais, mas ilegítimas por se revelarem injustas na prática", afirma a minuta de decreto de estado de sítio encontrada pela Polícia Federal nas buscas contra Cid.

Com esse ponto em comum, ambas tentam justificar o uso da lei contra o próprio Estado de Direito.

A minuta gestada no bolsonarismo afirma que decisões do STF (Supremo Tribunal Federal) conflitam com o princípio da moralidade, também previsto na Constituição —por isso, seria legítima uma ação contra integrantes do tribunal.

O primeiro ato institucional da ditadura, por sua vez, diz que o poder constituinte "se manifesta pela eleição popular ou pela revolução". Revolução era o termo que os militares usavam para chamar o golpe de Estado contra Goulart.

"Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma", diz o texto.

Tanques do Exército passam por ruas do centro de São Paulo em 14 de abril de 1964, duas semanas depois do golpe militar - Acervo UH/Folhapress

O AI-1 foi redigido por Carlos Medeiros Silva e Francisco Campos.

Autor da Constituição também de outra ditadura, a do Estado Novo, Campos foi reconhecido tanto pela ligação com o autoritarismo como pelo que se via como erudição, a ponto de lhe render o apelido de Chico Ciência.

Já o grupo chamado pela Polícia Federal de "núcleo jurídico" para manter Bolsonaro no poder não tinha um nome com a mesma reputação.

Segundo a PF, ele era composto por Anderson Torres, então ministro da Justiça, Filipe Martins, assessor especial do presidente, o advogado Amauri Feres Saad e o padre José Eduardo de Oliveira e Silva, além de Cid.

Para Vera Chueiri, professora de direito constitucional da UFPR (Universidade Federal do Paraná), a exemplo de Campos em 1964, o grupo de Bolsonaro também tentou "dar fundamentação jurídica a um golpe, mas com menos sofisticação".

Ela se refere tanto à minuta de decreto de estado de sítio como com aquela, encontrada com Torres, que previa a decretação de estado de defesa no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para reverter o resultado das eleições.

O próprio Torres, que nega a autoria do texto, chamou-o de "mal redigido" e "aberração jurídica".

Ainda que com redação e argumentação rudimentares, as minutas encontradas com o bolsonarismo revelam uma estratégia que parece ser pensada, diz a professora da UFPR.

Elas se apropriam de um argumento importante da teoria constitucional, a importância da legitimidade e não só da legalidade, para usá-lo de forma deturpada.

"Se tem uma decisão legal que não atende a critérios de justiça, pode-se provocar quem toma a decisão a repensá-la", diz.

É claro que nem sempre quem se sente injustiçado vencerá, diz a professora, uma vez que há diferentes entendimentos de legalidade e legitimidade. Mas um acordo moral e social mínimo é preciso respeitar, diz: "jamais se admite que se use a Constituição contra ela mesma".

Autor do livro "Legalidade e Autoritarismo: o Papel dos Juristas na Consolidação da Ditadura Militar de 1964" (Juspodivm, 2018), Danilo Pereira Lima avalia que a colaboração dos profissionais do direito foi fundamental para a consolidação da ditadura militar ao longo dos seus 21 anos de duração.

Essa mesma cooperação não aconteceu no caso de Bolsonaro, observa. Enquanto em 1964 o golpe teve o apoio de importantes figuras da comunidade jurídica, muitas das quais se voltariam contra o regime depois, em 2022 a adesão foi bem mais restrita.

Para Lima, a diferença se explica pelas diferenças no cenário internacional, antes de Guerra Fria e, em 2022, com potências como os Estados Unidos contrárias a uma ruptura da ordem democrática.

Historiador e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Carlos Fico vincula o verniz jurídico de golpes e tentativas no país a outro aspecto histórico.

"No Brasil, as intervenções autoritárias foram todas de natureza militar, e os militares dão muita importância a manuais e regras", afirma. "É por isso que sempre tem juristas por trás."

A tarefa deles, aliás, nem sempre é de fácil compreensão. As piruetas institucionais para dar aparência de legitimidade ao regime ditatorial não escaparam nem a Magalhães Pinto, o governador de Minas Gerais que abriu o estado às tropas golpistas de 1964.

"Desde 31 de março nós verificamos que temos vivido certa confusão. Inicialmente, restauramos a Constituição [de 1946], depois fizemos outra Constituição [a de 1967] e falamos ora em legalidade, ora em revolução", disse ele em 1968 durante reunião do Conselho de Segurança Nacional, segundo relato presente na reedição de "A Ditadura Envergonhada" (Intrínseca, 2014), do jornalista e colunista da Folha Elio Gaspari.

O general Olympio Mourão Filho (de farda militar, à esq.) e o então governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto (de terno, ao centro), celebram a deposição de Jango em Juiz de Fora em 8 de abril de 1964 - Agência O Globo

No caso de Bolsonaro, ainda está com a Polícia Federal a investigação do que há ou não de ilegalidade e de envolvimento do ex-presidente na articulações golpistas no Planalto, e do quanto elas estão ligadas aos ataques de 8 de janeiro.

Alvo de medidas como recolhimento de passaporte, além de busca e apreensão, Bolsonaro nega ter praticado crime e tem repetido seu discurso de agir "dentro das quatro linhas da Constituição".

"Agora o golpe é porque tem uma minuta do decreto de estado de defesa", disse o ex-presidente a apoiadores na avenida Paulista, em São Paulo, no fim de fevereiro. "Golpe usando a Constituição? Tenha paciência", declarou.


JURISTAS LIGADOS À DITADURA MILITAR

Francisco Campos (1891-1968)

Advogado, professor e político conservador. Responsável pela redação da Constituição brasileira de 1937 e do preâmbulo do AI-1 do golpe de 1964

Carlos Medeiros Silva (1907-1983)

Advogado ligado a Francisco Campos, redigiu o AI-1 e foi o principal autor do projeto que resultou na Constituição de 1967. Nomeado ministro do STF por Castelo Branco, foi posteriormente seu ministro da Justiça

Luís Antônio da Gama e Silva (1913-1979)

Professor da Faculdade de Direito da USP, foi reitor da universidade e posteriormente ministro da Justiça de Costa e Silva. Redigiu o AI-5, que cassou direitos fundamentais e fechou ainda mais o regime militar

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