Descrição de chapéu Vida cultural na pandemia

Sufoco na pandemia é um teste de criatividade para profissionais da cena independente

Sem o ganha-pão e longe dos patrocínios de grandes marcas, produtores e artistas se viraram ensaiando a tal da reinvenção

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Ana Elisa Faria
São Paulo

Nunca a cultura foi tão importante —e tão renegada como em 2020. No distanciamento social, lives musicais, teatro virtual, séries e filmes fizeram companhia para muita gente, mas, do outro lado da telinha, artistas e produtores culturais, em especial os da cena independente, viram-se sós e sem renda.

Sem o ganha-pão e longe dos patrocínios de grandes marcas desde março, esses profissionais se viraram ensaiando a tal reinvenção.

Show da cantora Bebel Gilberto transmitido a participantes da última edição da Rio Music Market, conferência realizada online pela Associação Brasileira da Música Independente
Show da cantora Bebel Gilberto transmitido a participantes da última edição da Rio Music Market, conferência realizada online pela Associação Brasileira da Música Independente - Karime Xavier/Folhapress

“Tive que reinventar todos os meus projetos”, diz Andreza Delgado, produtora cultural, youtuber e colunista do UOL.

Um dos trabalhos tocados por ela é a PerifaCon, a comic con da favela, cuja segunda edição aconteceria na zona leste de São Paulo, em abril. Com o cancelamento decorrente da pandemia, ela conta que, no primeiro momento, sentiu medo.

Achei que ia passar fome porque muitos dos meus pagamentos começaram a atrasar. Alguns, não recebi até hoje.”

Outro projeto da produtora é a Copa das Favelas, evento gamer virtual, realizado pela plataforma de streaming Twitch nos dias 12 e 13 de dezembro, que reuniu 12 equipes de comunidades do país.

A competição, planejada antes da chegada da Covid-19, teve de ser radicalmente modificada. “Paramos para redesenhar um campeonato totalmente online, o que não é tarefa fácil por se tratar de um evento voltado para a periferia. Na quebrada, temos inúmeros problemas de conexão de internet”, relata.

O ultimato da tecnologia também chegou ao teatro. A crise obrigou companhias teatrais a enfrentar, de um dia para o outro, demandas que já ocorriam, ’’mas eram empurradas para a coxia’’, explica o diretor Pedro Granato, do Núcleo Pequeno Ato.

“A pandemia forçou os grupos a lidarem com câmeras, transmissões e redes sociais. A necessidade de renovação de linguagem e de meios já estava em curso, mas se tornou obrigatória. Não dá para virar as costas para o digital. Outros períodos de grandes mudanças na história mostraram que a resistência não é boa. Por outro lado, há uma situação emergencial. Não dá para achar que a pandemia é só uma oportunidade para você se renovar. É uma crise sem precedentes”, resume.

Granato enxerga o setor entre dois pólos: de um lado, há a urgência de uma transformação, de outro, a necessidade de ações emergenciais de proteção à classe.

Apesar de estar há meses com o espaço fechado, e pagando aluguel na região central da capital paulista, Granato tem olhado a situação a partir da perspectiva do copo meio cheio.

Entre agosto e setembro, dirigiu o espetáculo virtual interativo “Caso Cabaré Privê”, transmitido do teatro, sem público, via Zoom. A temporada da peça teve “casa” cheia nas 20 sessões. “Foi melhor do que se tivesse sido presencial. Tivemos uma média de público de mais que o dobro da capacidade, que são 40 lugares, e, sem os espectadores ali, não gastamos com segurança e faxina”, diz.

Além do lado econômico, Granato aponta outra vantagem da migração temporária para o online: a amplificação e a diversidade do público. “Alcançamos pessoas de outros estados e até países. No último fim de semana, fizemos um debate e tinha gente de Rondônia assistindo. Como era um espetáculo interativo, a gente ouvia diversos sotaques. No último dia, tinha um cara que estava vendo a peça do hospital, foi emocionante. Tivemos ganhos. Vejo avanço de linguagem e de experimentações, é uma nova forma de fazer teatro.”

Ana Garcia, diretora do Coquetel Molotov, festival musical pernambucano alternativo, concorda que a ampliação do público é um ponto positivo do formato online. Em julho, após observar o que os eventos nacionais e estrangeiros estavam fazendo na internet, ela e sua equipe transformaram o Molotov EXE, que aconteceria em São Paulo, em maratona musical virtual.

“Já tínhamos o patrocínio para a versão paulistana. Com a pandemia, os patrocinadores abraçaram a migração para o digital. Foram 15 horas de música com quatro ‘‘palcos’’ simultâneos, que eram salas de Zoom, e o público ia migrando de uma para a outra. Tentamos levar a experiência do físico para o virtual.”

A 17ª edição do No Ar Coquetel Molotov, marcada para outubro, foi adiada e deve ocorrer virtualmente em janeiro de 2021, entre os dias 16 e 23. Além de música, o festival vai oferecer workshops, oficinas e um edital, que visa impulsionar o cenário independente no Recife. “A ideia é ajudar os novos artistas de Pernambuco porque essa galera, na pandemia, recebeu zero apoio.”

De acordo com Ana Garcia, o Coquetel Molotov costuma empregar diretamente mil pessoas por edição. Em 2020, esse staff diminuiu porque serviços como os de segurança e montagem de palco foram cortados.

“Mesmo assim, envolvemos uma cadeia de técnicos, músicos, produtores e mantivemos a nossa equipe fixa, de 20 pessoas. A gente se adapta às adversidades porque, no fim, somos criativos. Mas é difícil e muito diferente do que fazíamos. Criamos outro produto, não é festival, é uma obra audiovisual.”

O curador e fundador do Festival Bananada, Fabrício Nobre, percebeu logo em março que a edição 2020 do evento de música, que ocorre desde 1999 em Goiânia, não seria realizada. No lugar, vieram quatro lives, ou #BanaLive, que, segundo ele, serviram para movimentar a cena e manter a marca.

“Levantamos uma graninha, mas não tem a mesma efetividade nem a pressão de fazer o Bananada presencialmente”, diz. Para ele, que sonha com o evento físico em agosto de 2021 “se houver imunização para todos”, o ano foi de caos.

“Os festivais pararam, dezenas de casas fecharam, e os artistas ficaram sem trabalho, o suporte governamental foi péssimo.” Entretanto, de acordo com Nobre, há reflexos positivos das ações epidêmicas, como a aceleração de novas tecnologias para as livestreamings, a ampliação dos players de música e a rearticulação do setor do ponto de vista das entidades de classe.

Carlos Mills, presidente da Associação Brasileira da Música Independente, ressalta que, para a música, em particular, a pandemia dividiu o setor. De um lado, os shows ao vivo foram zerados, cessando uma fonte de receita importante para os artistas. Na outra ponta, a música gravada continuou em crescimento.

Uma pesquisa da associação sobre o mercado da música independente no país mostrou que, das 200 canções brasileiras mais tocadas diariamente no Spotify, 53,52% são indies.

A ABMI, organização sem fins lucrativos encabeçada por Mills, realizou, entre os dias 8, 9 e 10 deste mês a oitava edição do Rio Music Market, conferência que reúne profissionais da música para debates, showcases e negócios.

A edição foi transmitida online para os participantes pela plataforma Whova. Temas relacionados à pandemia foram incluídos, como a evolução das lives na quarentena, que de caseiras transformaram-se em negócios lucrativos, e o festival do futuro, que, a partir das experiências de 2020, tende a se tornar “fígital”, ou seja, digital e físico ao mesmo tempo.

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