Descrição de chapéu Financial Times

Pandemia desperta interesse por carreiras no serviço público

Desaceleração da economia, busca por propósito e ofertas de emprego trazem jovens para o setor

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Londres | Financial Times

Calla Cambrey planejava se tornar advogada, mas um estágio no governo do País de Gales, em Cardiff, onde ela está estudando economia e política, ajudou a inspirá-la a buscar trabalho no serviço civil.

“Na situação em que estamos, quero um emprego no qual eu possa retribuir”, ela diz. “Muita gente não vai sair da pandemia especialmente bem, e quero trabalhar em alguma coisa com a qual eu possa ajudar”.

Sua opinião sobre uma carreira no setor público é compartilhada por pessoas de diversos países do planeta. O coronavírus redespertou o interesse pelo setor, seja por conta de um senso redescoberto de serviço público, seja pelos termos de emprego relativamente atraentes em oferta, seja pela falta de oportunidades alternativas em meio à desaceleração atual na economia.

No Reino Unido, o programa Fast Stream, do serviço civil, oferece contratação por concurso a mil candidatos a emprego a cada ano. Já que outros grandes empregadores, entre os quais as quatro grandes companhias de auditoria e consultoria, estão reduzindo o número de vagas que oferecem, Martin Birchall, que comanda o grupo de pesquisa High Fliers, diz que o serviço civil se tornou o principal recrutador dos formandos nas melhores universidades do país, durante a pandemia.

Birchall argumenta que a procura por e a oferta de cargos públicos cresceu. Uma pesquisa conduzida por sua organização em novembro demonstrou que 57% dos universitários britânicos desejavam empregos nos quais “pudessem retribuir” –dois anos atrás, o percentual de entrevistados que optaram por essa resposta foi de 41%. “Em uma crise, as pessoas buscam certeza e estabilidade. O ano de 2021 será uma safra recorde de contratações para o serviço público”.

Os atrativos do serviço civil são ecoados em outros países, entre os quais a Índia, que herdou um sistema criado para atrair pessoal britânico de elite a fim de administrar a antiga colônia. Um milhão de pessoas se candidatam a cada ano para apenas mil vagas oferecidas pela Comissão de Serviço Público da União, a agência central de recrutamento de funcionários públicos indianos. Os candidatos precisam passar por 30 horas de exames, uma entrevista e um teste de personalidade.

Diante do desemprego severo no país, cargos públicos, que oferecem estabilidade no emprego e benefícios atraentes, sempre atraíram os indianos. O coronavírus postergou os exames de admissão do ano passado de julho para outubro, e alguns daqueles cujas inscrições foram prejudicadas pela pandemia chegaram a recorrer à Suprema Corte do país em busca de uma oportunidade de se candidatar.

Aryendra Sharma, 27, abriu mão de um emprego “com salário decente” como engenheiro a fim de estudar por 12 a 13 horas a cada dia para o concurso do serviço público, nos últimos 12 meses. Ele estudou temas como assuntos atuais, história mundial e ética. “Um emprego no serviço civil definitivamente representa uma elevação de status”, ele diz. “Não existe outro tipo de trabalho que permita que você sirva o país e o povo”.

Na China, onde a palavra “mandarim” é sinônimo de servidor público, os atrativos do status social e econômico elevado que surge com o controle de recursos pelo Estado influenciam há séculos a opção pelos empregos públicos. O exame para o serviço público na era imperial chinesa, que durou 1,3 mil anos, era o melhor caminho para que homens de origens modestas subissem na escala social.

Sob o regime comunista, os empregos públicos ganharam popularidade depois que Pequim retomou os exames de admissão para o serviço público, em 1994. Os candidatos atuais fazem exames escritos. Estes incluem dissertar sobre os motivos para que uma economia orientada pelo Estado funciona, e mais de 100 questões de múltipla escolha sobre todo tipo de assunto, dos idiomas de trabalho usados na ONU às propriedades químicas das joias de prata.

Os atrativos do “prato de arroz de ferro” (uma expressão idiomática chinesa que denota empregos públicos seguros) continuam a ser fortes apesar da ascensão do setor privado nos últimos anos.

“O serviço civil chinês historicamente foi capaz de atrair os melhores talentos do país e a situação está melhorando depois da pandemia”, diz Ming Xia, professor da City University of New York.

Uma pesquisa no ano passado entre universitários em final de curso em Shaoxing, uma cidade próspera no leste da China, constatou que 44% deles viam o serviço público como opção preferencial de carreira, proporção duas vezes superior à registrada em 2019. O número de inscrições para os 26 mil cargos oferecidos a cada ano subiu a 965 mil no ano passado, para os exames realizados em novembro, ante 920 mil no ano anterior.

Lucy Li, que começou a trabalhar no departamento financeiro do governo local de sua região este ano, depois de perder o emprego como contadora em Tangshan, uma cidade no norte da China, diz que “poucos empregos no setor privado rivalizam com os cargos públicos em termos de benefícios”.

Na França, o número de inscritos para as apenas 83 vagas oferecidas a cada ano pela ENA (École Nationale d’Administration), a escola de elite para o serviço civil, subiu de 1.735 em 2019 a 1.775 em 2020, principalmente por conta de uma nova rota de acesso para pessoas com doutorados. A escola vai anunciar em breve um novo percurso de admissão dirigido a pessoas de grupos com representação baixa no serviço civil.

Patrick Gérard, diretor da ENA, diz que dois terços de seus estudantes se apresentaram como voluntários no ano passado para ajudar na resposta à pandemia. “Quando acontece um evento grave que afeta o país, como o atentado terrorista ao Bataclan, em 2015, ou o coronavírus, as pessoas querem saber o que podem fazer para ajudar. A Covid mostrou a necessidade de solidariedade, saúde e organização, e todas as áreas do Estado tiveram de mostrar serviço”.

Mas ele acautela que, embora o trabalho no setor público continue a ser em geral prestigioso e relativamente atraente, na França, seu prestígio não é tão grande quanto nos “30 anos gloriosos” de reconstrução depois da Segunda Guerra Mundial, antes da explosão de postos de trabalho mais bem remunerados no setor privado.

Como em outros países, uma combinação entre apertos de orçamento e uma expectativa de oportunidades limitadas significa que existe ambivalência sobre o trabalho no setor público –uma tendência agravada com a pressão gerada pelo coronavírus sobre os governos, que causou uma queda na arrecadação de impostos e aumento do endividamento público.

No México, o presidente Andrés Manuel López Obrador fez do corte na burocracia do setor público uma meta significativa em seu programa de austeridade, cujas políticas pretendem reorientar verbas a programas sociais. De dezembro de 2018, quando o governo dele assumiu, a junho de 2020, o governo federal mexicano demitiu 9.430 funcionários públicos –um quinto de seu quadro.

“Os salários do governo são muito baixos”, diz um empregado importante de um ministério mexicano. “Não há plano de saúde e não há indenização por demissão. Para os postos médios e altos, você trabalha 24 horas ao dia, e tem de cobrir todas as despesas que isso acarreta –eletricidade, telefone, internet”.

Rosa Pavanelli, presidente da Public Services International, a confederação de sindicatos de funcionários públicos de todo o planeta, diz que o coronavírus mostrou a importância dos empregos no governo. Mas, diz ela, a crise também revelou fraquezas causadas pela persistente erosão no serviço público, como a defasagem nos benefícios, a adoção de contratos de trabalho mais curtos e a privatização ou terceirização de certas atividades.

“Creio que a necessidade de mais investimento nos serviços públicos tenha ficado clara para a maioria das pessoas, mas ela ainda não se tornou parte da agenda das instituições”, diz Pavanelli. “Precisamos insistir quanto à diferença que um emprego público de qualidade pode fazer na vida das pessoas e também para as empresas”.

Thomas Ross, presidente da Volcker Alliance, em Nova York, uma organização sem fins lucrativos que busca fortalecer o setor público, diz que, desde o apelo do presidente americano John Kennedy por um fortalecimento do serviço público, as críticas de sucessivos políticos à burocracia, de Ronald Reagan a Donald Trump, erodiram a confiança e o apoio do público.

A lei que regulamenta o serviço civil americano não é reformada desde 1978, “quando o governo contratava pessoas como secretários, o instrumento de trabalho era uma máquina de escrever, os salários e promoções dependiam de tempo de serviço, e uma pessoa trabalhava pela maior parte de sua carreira no mesmo lugar”. Ross quer reformas que incluiriam recrutamento “lateral” para os postos mais importantes e uma rotação mais frequente em termos de função.

Ele aponta para uma ligeira alta na procura por funcionários públicos, em dezembro, depois de um longo período de estagnação, e acredita que o novo pacote federal de estímulo para responder à pandemia possa gerar novas contratações pelos governos estaduais e locais.

A organização dele também lançou iniciativas nas universidades para conectar estudantes a funções governamentais. “O senso de responsabilidade e de serviço é mais alto na atual geração”, ele diz.

Pandemia alimenta alta no trabalho cívico

Iqra Ishaq não se sentiu motivada a buscar um posto no programa de treinamento do banco para o qual estava trabalhando no ano passado, depois de se formar em Direito na Universidade de Strathclyde, na Escócia. Ela se sentiu mais inspirada por sua capacidade de ajudar as pessoas que estavam enfrentando problemas com dívidas, habitação e acesso a benefícios, em seu trabalho como voluntária no Citizens’ Advice Bureau.

Como resultado, ela se candidatou ao Think Ahead, um dos diversos programas em rápida expansão criados nos últimos anos para conduzir universitários talentosos ao setor público britânico. O programa a empregou em uma organização de saúde mental no norte da Inglaterra, e ao mesmo tempo está ajudando a cobrir os custos de estudo de Ishaq para sua qualificação profissional.

Outro programa, o Teach First, se tornou um dos maiores recrutadores de universitários no Reino Unido. Outros desses programas incluem o Police Now, o Frontline –que se concentra em assistência social a crianças–, e o Unlocked, que trabalha com o serviço penitenciário.

Matthew Brown, diretor estratégico do Think Ahead, diz que “a pandemia destacou a importância da saúde mental e está alimentando uma renovação do interesse”.

Ishaq diz que “queria usar minha experiência para ajudar os outros até que eles possam ajudar a si mesmos”.

Tradução por Paulo Migliacci

Andrew Jack , Sun Yu , Jyotsna Singh e Jude Webber
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