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João Cezar de Castro Rocha

Violência é ato final de golpistas diante de profecia fracassada

Professor analisa áudios e vídeos de manifestantes bolsonaristas pelo país

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João Cezar de Castro Rocha

Ensaísta e professor titular de literatura comparada na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Autor de “Guerra Cultural e Retórica do Ódio (Crônicas de um Brasil Pós-Político)”

[RESUMO] Professor retoma conceito de dissonância cognitiva coletiva para analisar áudios e vídeos de manifestantes bolsonaristas golpistas que, frustrados diante do fracasso de suas profecias, recorrem à violência e ao terrorismo doméstico para fortalecer sua alucinação.

O vídeo parece caricato, mais um exemplo da dissonância cognitiva coletiva chamada bolsonarismo, mas, no fundo, nada poderia ser mais grave. Escrevo este artigo com um peso enorme no coração, porém nunca foi tão urgente dizer o que precisa ser dito, abrir os olhos, aguçar os ouvidos.

Em 30 segundos, um homem ameaça o futuro da nação Brasil, que, a bem da verdade, nunca se constituiu de todo, pois não pode haver nação em meio à desigualdade e ao racismo, diante da recusa radical de tudo que não seja espelho; não pode haver nação se o outro for reduzido ao papel de inimigo a ser metralhado —seja com palavras, seja com balas.

(Não pode haver nação na arquitetura da destruição bolsonarista.)

Tropa de choque da Polícia Militar dispersa manifestantes com gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral na Rodovia Castelo Branco - Rubens Cavallari

Um senhor encanecido, fantasiado de militar, transforma o Antigo Testamento em arma de extermínio. Erra na referência, confunde os fatos, mas pretende recorrer à citação na qual Samuel instruiu Saul: "Vai, pois, agora, e fere a Amaleque, e destrói totalmente tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas e desde os camelos até aos jumentos" (1 Samuel 15).

Em seu delírio, o homem, que se identifica como "pastor, capelão e capitão", deturpa a passagem; a alma adoecida pelo bolsonarismo imagina outro cenário, desenhado com sangue: "Matem todos, inclusive as mulheres grávidas. Transpasse a barriga. A espada na barriga. Porque o que está ali é filho do demônio".

Daí, especial esmero no assassinato de fetos —sim, esse bolsonarista de quatro costados está propondo a morte de crianças no ventre das mães— para que "demônios" não viessem ao mundo vingar a morte dos pais. Na sequência, a analogia-barbárie: simpatizantes do PT e do PSOL são novos "demônios" que serão eliminados se tiverem a má sorte de cruzar o caminho desse cidadão de bem, que afirma orgulhosamente ser armamentista.

Puro horror! Acabei de ler o incontornável romance de Boubacar Boris Diop, "Murambi, o Livro das Ossadas", e assim passamos do Antigo Testamento do Brasil bolsonarista ao genocídio do grupo étnico tutsi, ocorrido em Ruanda em 1994. Os hutus usaram exatamente o mesmo argumento para massacrar crianças e mulheres grávidas. Seu crime? Serem tutsis. O cidadão de bem, acampado diante de quartéis para pedir democraticamente que os militares brinquem de ditadura "com Bolsonaro no poder", pensa, odeia e deseja agir como os genocidas de Ruanda.

Como entender essa alucinação? É possível, ainda, entender alguma coisa?

Quando a profecia falha

O Brasil vive a manifestação coletiva, em dimensão inédita na história, de fenômeno bastante estudado em seitas milenaristas, em um número muito reduzido de adeptos. O que ocorre quando o fim do mundo não comparece ao encontro marcado?

"Quando a Profecia Falha" (1956) é um notável ensaio escrito por três pesquisadores, Leon Festinger, Henry W. Riecken, Stanley Schachter. Eles conseguiram se infiltrar na Fraternidade dos 7 Raios, que, dizendo ter recebido mensagens enviadas por seres superiores do planeta Clarion, previa um dilúvio de proporções bíblicas para 21 de dezembro de 1954. Ora, como lidar com o dia seguinte, cuja chegada, por si só, esclarece o fracasso da profecia?

Em primeiro lugar, busca-se racionalizar o fato; procura-se, por óbvio, uma escusa que permita manter a convicção na ausência absoluta de provas. O recurso é limitado: não se pode racionalizar novas profecias que, teimosas, insistam em falhar. Nesse caso, a violência expiatória é o recurso mais usual e mais terrível: eis onde estamos no Brasil bolsonarista.

(Você pensou na tragédia provocada pelo culto a Jim Jones, ainda que, como eu, tenha se assustado com o próprio pensamento?)

Em 31 de outubro, logo após a derrota de Bolsonaro nas eleições, vias em todo o país foram bloqueadas, em uma ação orquestrada que sugere organização prévia. Dizia-se que, caso manifestações se mantivessem por míticas 72 horas, as Forças Armadas armariam legos golpistas em Brasília "com Bolsonaro no poder".

No dia 3 de novembro, expirado o prazo mágico, invocou-se o terraplanismo do juiz favorito do movimento: SOS FFAA. Artigo 142. Selva! Acampamentos diante de quartéis e correntes de oração conduziriam à ditadura democrática. Mais 72 horas e tudo estaria resolvido —"com Bolsonaro no poder".

Em 7 de novembro, convocou-se uma greve geral, pois, se bem-sucedida, em 72 horas paralisaria o país, e agora, sem dúvida, tanques sairiam às ruas —"com Bolsonaro no poder". A greve, porém, terminou sem começar, não com estrondo, mas com muita choradeira.

No dia 15 de novembro, Bolsonaro em silêncio impiedoso; Lula, o presidente eleito, brilha no Egito e é celebrado em todo o mundo. Porém, a maior manifestação da história é convocada: pronto! A terra tremerá, o gigante despertou, a nação se unificou —"com Bolsonaro no poder".

Uma tempestade que faria a felicidade dos alienígenas de Clarion castiga os manifestantes e dispersa a multidão, que, no entanto, insiste em jogar caxangá, tira, põe e (se) deixa ficar. Multidão fiel de guerreiros com guerreiras, que (por enquanto) fazem zigue-zigue-zá.

O estoque de novas profecias está prestes a se esgotar, ainda que bolsonaristas, tanto mais corajosos quanto mais distantes da minha terra tem palmeiras, se esforcem por manter a galinha de ouro da tríade sagrada do lacre-like-lucro. Estão fomentando violências e mortes!

É o que acontece quando todas as profecias falham e o líder, em lugar de se sacrificar pela causa, sacrifica a causa para salvar a própria pele —mansão, comida, roupa lavada, salário de marajá e muitos advogados, porque nem mito é de ferro.

A frustração acumulada da multidão pode explodir em atos de terrorismo doméstico e assassinatos expiatórios, cuja onda tende a crescer. Foi assim em toda a história. Hoje, contudo, o fracasso da profecia envolve milhões de pessoas, reféns da dissonância cognitiva coletiva produzida deliberadamente pela midiosfera extremista.

(Celular na cabeça, em posição horizontal, para ser visto com nitidez desde o planeta Clarion. E jogue suas mãos para o céu e agradeça se acaso tiver alguém que você gostaria que estivesse sempre com você, na rua, na chuva ou no quartel mais próximo —"com Bolsonaro no poder".)

Mãe carinhosa, linchadora feroz

Estamos em bloqueio realizado pelos bolsonaristas. Um senhor, franzino, precisa seguir seu caminho. Tenta passar, mas rapidamente é cercado por uma horda que retorna à sanha primitiva da busca de bodes expiatórios para o linchamento ritual. Uma mãe, cuidadosa, armada com a camisa da seleção, abraça seu filho e o retira do meio do redemoinho.

Contudo, ato contínuo, faz a travessia perigosa da jagunçagem e, aproveitando que a vítima se encontra no chão, sendo massacrada por homens muito mais fortes e muito mais jovens, desfere um violento pontapé na cabeça do senhor, cujo corpo, pelo impacto do golpe, é lançado com força no asfalto.

A linchadora dá as costas para a brutalidade que protagonizou; talvez tenha se recordado da criança (que assiste à cena). No entanto, uma força estranha a domina, ela se vira para o corpo estendido no chão e vocifera luciferina: "Morre, petista!".

Satisfeita, em paz consigo mesma, caminha em direção à criança, que viu sua mãe desferir um violento pontapé em um homem idoso, caído e já sem reação, ensanguentado pelos socos que recebeu de homens muito mais jovens e muito mais fortes.

(A mãe de bem, acampada diante de quartéis para pedir democraticamente que os militares brinquem de ditadura "com Bolsonaro no poder", pensa, odeia e deseja agir como os genocidas de Ruanda.)

Exemplos similares são legião: em Minas Gerais, bravos guerreiros do ar se associam para impedir que uma mulher chegue ao trabalho. Violentos, empombados, levantam a voz e calam a trabalhadora. No mesmo instante, um homem ao volante de outro carro informa que precisa passar.

Os soldados de PlayStation não hesitam e dóceis abrem caminho. Ao lado, dois policiais encostados em uma viatura nada fazem, ainda que a mulher lhes tenha implorado não ajuda, mas socorro.

Em uma estrada qualquer do Brasil profundo, um bolsonarista de carteirinha, dizendo-se caminhoneiro, salta na boleia de um caminhão para obrigar um trabalhador a parar e correr o risco de perder sua carga. O agitador de lives, o guerrilheiro do Facebook vive seu momento rumo à Estação Brasília e lança mão do argumento-crime: "O senhor não tem filhos? Melhor colaborar ou pode não ver mais seus filhos".

Em todo o Brasil, há uma proliferação de episódios similares, registrados em vídeos que excitam o voyeurismo bolsonarista.

Ruanda pode ser aqui e agora.

O silêncio do Messias

O silêncio de Jair Messias Bolsonaro é cúmplice das manifestações antidemocráticas; sua mudez é ação deliberada de estímulo ao caos. Em uma atitude vergonhosa, o general Braga Netto assumiu o lugar do patrão no cercadinho do Alvorada para atiçar a militância com uma declaração cuja ambiguidade desonra sua farda: "Vocês não percam a fé. É só o que posso falar para vocês agora".

Por quê? Trata-se de anúncio de golpe? Nesse vazio de autoridade, pequenos bolsonaros se multiplicarão, armados, velozes e furiosos.

A profecia falhou, e a dissonância cognitiva coletiva campeia sem freios. A longo prazo precisamos ajudar essa multidão a se libertar da midiosfera extremista. De imediato, contudo, as instituições precisam reagir com muito vigor.

O bolsonarismo manipula a ilusão da militância para defender ditadura "com Bolsonaro no poder". Esse é o mais grave atentado contra a democracia brasileira. As eleições foram vencidas pela frente ampla: o parque temático do golpismo bolsonarista converteu-se em organização criminosa e, se não for coibido imediatamente, o circo permanecerá em atividade com a intenção tão clara quanto delinquente de tumultuar a transição do poder e a posse de Lula e Geraldo Alckmin.

Se não estivermos à altura do desafio, a brilhante distopia de Ignácio de Loyola Brandão será nossa realidade em um futuro próximo: "Não verás país nenhum".

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