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'Temos que encontrar alguma cura', diz Deborah Colker, que estreia espetáculo sobre doença

Principal coreógrafa do país transforma vulnerabilidade e discriminação em dança e afirma que o ser humano não aprendeu nada com a pandemia

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No fim de 2019, quando faltava pouco para estrear o espetáculo "Cura", Deborah Colker recebeu a notícia de que a Petrobras, já sob o governo Bolsonaro, não iria mais patrocinar sua companhia de dança, encerrando uma bem-sucedida parceria de 25 anos.

Meses depois, veio a pandemia. Sem apoio financeiro, sem espetáculos, mas com salários a pagar, além de outros custos fixos, a bailarina e coreógrafa diz que ela e o sócio, João Elias, acharam que a companhia chegaria ao fim.

"Lembrei de quando estávamos começando em 94 e pensava: ‘Não acredito que estou vivendo isso de novo’. Fizemos empréstimos, tivemos que fechar as escolas de dança por um período, usamos nossas economias para manter o grupo", lembra Colker, primeira mulher a dirigir um espetáculo da trupe canadense Cirque du Soleil, em 2009, e uma das responsáveis pelo show de abertura da Olimpíada do Rio, em 2016.​

A coreógrafa Deborah Colker nos bastidores de 'Cura', seu novo espetáculo, no teatro Alfa, em São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

Nesse período, ela conta que se agarrou ainda mais à montagem de "Cura", que começou a desenvolver em 2018. "Tinha certeza que esse espetáculo era o que tínhamos para continuar existindo. Foi o que manteve a minha sanidade."

A ajuda veio com novos patrocinadores e há um mês ela finalmente estreou "Cura".Nesta quinta (4), o espetáculo, que tem dramaturgia do rabino Nilton Bonder e trilha original de Carlinhos Brown, chegou a São Paulo para uma brevíssima temporada no teatro Alfa até o dia 14 deste mês.

A ideia do projeto, diz a coreógrafa, surgiu quando o físico britânico Stephen Hawking morreu aos 76 anos, em 2018. Desde os 21 anos, o cientista tinha esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença degenerativa incurável e progressiva, que leva à paralisação dos músculos.

"Diziam que ele não viveria nem três anos, e ele chegou aos 76. Perdeu os movimentos, mexia só as pálpebras e desenvolveu teorias, escreveu livros. Ele encontrou a cura do que não tem cura."

Outra história que lhe serviu de inspiração é a do neto, Théo, 12. O menino nasceu com epidermólise bolhosa, doença rara que causa bolhas e descolamento da pele.

Leia a seguir trechos da entrevista de Colker à coluna.

PANDEMIA

O contexto da pandemia foi uma coincidência infeliz. Mas o lugar desse espetáculo é outro. O coronavírus tem vacina. Eu fui para um buraco mais fundo, de buscar a cura do que não tem cura, não só de doenças no plano científico, mas também as existenciais --ignorância, discriminação, a compreensão de outros planos. A cura tem que existir: se não a física, a emocional, a espiritual, a existencial.

FALSA NORMALIDADE

As pessoas adoram dizer que alguém é ‘normal’ e discriminam quem não seria assim. Mas o que é normal? É estar na vertical, ter um tique? Quem determina o que é belo, feio, diferente? Você vê o exterior da pessoa, mas e quem sofre com doenças invisíveis, como depressão? E por que quem não se encaixa nesse ‘normal’, pessoas com doenças raras, que são tronchas, são obrigadas a viver isoladas? Me cansa essa falsa normalidade, por isso quis falar de doença e discriminação.

Bailarinos da companhia Deborah Colker em cena do espetáculo 'Cura' - Leo Aversa/Divulgação

​DOENÇA

Como ia trabalhar a cura precisava me encontrar com a doença, descobrir esse repertório de gestos. Não dá para ter a ingenuidade de achar que a cura é pura e a doença, não. Tem um momento em que falamos da doença e trabalho a imobilidade, a guerra que a pessoa tem quando perde os movimentos e continua ali, lutando. Tem um momento de descontrole também. Esses movimentos eu fui buscar nesse lugar da discriminação.

​CURA

Tenho que encontrar a cura, temos que encontrar alguma cura em algum lugar para o que nos aflige. Pedir é curar, visitar é curar, se aproximar da dor é curar. Os personagens que guiam o espetáculo são o Stephen Hawking, que dribla o corpo dele aprisionado e encontra essa cura, meu neto Théo, essa criança mágica, o Obaluaê, que é o orixá da doença e da cura. Depois tem Jesus, que cura através do amor, que traz à civilização o amor. E por último mergulhei nas poesias do cantor Leonard Cohen, de quem sou fã, sobre o encontro com Deus no fim de sua vida.

Bailarinos da companhia Deborah Colker encenam o espetáculo 'Cura' - Leo Aversa/Divulgação

DISCRIMINAÇÃO

A humanidade está muito distante de ser inclusiva. Quer maior discriminação do que a pobreza? O pobre não entra em determinados lugares. Por quê? Isso é apartheid. Esse conceito de normalidade é relativo e o ser humano deveria usar sua inteligência para entender isso. Aí com a pandemia vêm falar em ‘novo normal’. Sendo que a pandemia aumentou a pobreza, levou a uma desigualdade extrema. Isso é inadmissível.

VULNERABILIDADE

O Nilton Bonder falou muito para assimilarmos a palavra vulnerabilidade. Porque basta um piscar de olhos para dar uma merda. Todas as tragédias civilizatórias, as pandemias, lidam com a vulnerabilidade do ser humano e com a ignorância. A vulnerabilidade humana é algo contundente. E isso foi muito presente na pandemia. Todo mundo percebe como somos vulneráveis, vê que ter um plano de saúde ajuda, mas não adianta diante do imprevisível.

GRATIDÃO AO NETO

Théo é uma criança mágica na minha vida e sou muito grata a ele. Ele tá lutando. Ele me ensina tudo, todos os valores fundamentais da vida, o que a gente não deve prestar atenção, o que é essencial, os valores mais profundos. Por causa dele sou uma pessoa muito melhor e espero ser uma artista melhor também, a cada dia. A minha bandeira é: Viva os raros e especiais! Me expus muito com esse espetáculo e quis isso, luto por tudo isso.

PEQUENEZ HUMANA

Cada vez mais a gente constata a incapacidade do ser humano de ser generoso, vê como ele, filosoficamente, é pequeno. Não acho que aprendemos nada com a pandemia, só ver dentro do nosso sistema político, a gente ter que defender a democracia. Tem quem acredite que o ser humano reconheceu sua vulnerabilidade, eu não. Não quer dizer que perdi as esperanças.

GOVERNO BOLSONARO

Quando perguntam se tive alguma ajuda do governo para a companhia sobreviver, eu digo: quer que eu ria ou chore? Estamos vivendo uma mutilação, um extermínio da cultura. E não só da cultura.

Olha, não sei como o Brasil sobreviverá após esse governo, mas tenho certeza que irá demorar para reconstruir muita coisa. Porque a paulada é rápida, mas a recuperação é bem demorada. Estamos passando por um processo destrutivo pesado, mas a reconstrução vai vir. E a arte ajudará, já que é libertária, transformadora. Tenho 60 anos, não sei se estarei aqui para ver essa recuperação, mas pode saber que vou trabalhar por ela.

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