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James Baldwin faz 100 anos como ícone do antirracismo de incansável independência

Escritor de obras como 'Terra Estranha' e 'O Quarto de Giovanni' trilhou um caminho solitário e rejeitava ser representante alheio

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São Paulo

No funeral de James Baldwin, em 1987, uma das encarregadas de discursar foi Toni Morrison, poucos anos antes de se tornar a primeira mulher negra a levar o Nobel de Literatura. Mas ali quem falava era uma amiga, sete anos mais nova, que se referia a ele como "Jimmy".

"Há coisas demais a pensar sobre você, e coisas demais a sentir. A dificuldade é que sua vida rejeita ser resumida —sempre rejeitou— e convida, no lugar, a ser contemplada."

Cem anos depois do nascimento do autor, marco que se completa na próxima sexta-feira, dia 2, essa contemplação não se abrandou —e Baldwin não se tornou nem um pouco mais fácil de definir.

Novaiorquino do Harlem morto de câncer em Paris, onde morou durante a maior parte da vida madura, Baldwin não foi apenas um escritor celebrado por romances como "Terra Estranha" e "Se a Rua Beale Falasse", mas um intelectual capaz de se inserir com voracidade e elegância no debate público, influenciando discussões sobre raça, sexualidade e religião num esforço de incansável independência.

"Baldwin consegue vivenciar a ambiguidade como um lugar", afirma o sociólogo Márcio Macedo, professor e coordenador de diversidade da Fundação Getulio Vargas. "E a ambiguidade é a única forma de entender a experiência negra em toda a sua complexidade."

Com isso, diz o professor, ele conseguia entender e organizar, na ebulição dos movimentos pelos direitos civis dos negros nos anos 1960, tanto a radicalidade dos Panteras Negras e dos muçulmanos que estavam com Malcolm X quanto a perspectiva pacifista de Martin Luther King.

Seu mais recente lançamento no Brasil, a reedição de "Da Próxima Vez, o Fogo" na Companhia das Letras —que encampa um projeto sólido de reapresentação do autor ao público desde 2018—, traz o longo ensaio autobiográfico "Ao Pé da Cruz: Carta de uma Região de Minha Mente", que deixa explícita a singularidade de seu percurso.

O texto mostra sua incorporação e, então, afastamento dos valores tradicionais de sua família; o mesmo balanço pendular em relação ao trabalho como pregador numa igreja cristã, na juventude; movimento que depois repete num encontro com o mítico líder Elijah Muhammad, da Nação do Islã. Aqui, há uma cena fascinante.

Cercado de acólitos numa mesa em sua casa, Muhammad percebe que Baldwin não pretende se filiar a seu grupo e pergunta, então, o que ele era se não muçulmano. "O que sou? Agora? Não sou nada", responde ele, algo desconfortável. "Sou escritor. Gosto de fazer as coisas sozinho."

"Não sei se a literatura do Baldwin é desejada por muita gente", diz o historiador e educador Allan da Rosa. "É uma literatura que aceita demonstrar fraquezas de discursos tidos como libertadores e forças de discursos tidos como superados."

Segundo o pesquisador, Baldwin tensionava "isso que hoje a gente chama de representatividade". "Ele dizia que o escritor não é deputado para representar milhões de pessoas. Se ele quiser representar essas pessoas, vai deixar de representar a si mesmo."

Rosa lembra que, quando vinham celebrar o escritor como uma voz em prol da libertação da comunidade gay, pelo romance "O Quarto de Giovanni", ele retrucava. "Não, eu não escrevi um livro sobre a homossexualidade. Isso é superficial, fortuito. Eu escrevi um livro sobre os labirintos do amor."

A figura de Baldwin, como um homem negro que fugia à heteronormatividade e às masculinidades viris que eram hegemônicas em sua época —aliás, presentes em homens como Malcolm X—, corrobora o que Macedo dizia sobre seu terreno de ambiguidade.

Em conversas que teve com leitores de sua obra em gerações anteriores, o professor sentia ter contato com dois grupos separados: os ativistas atentos a suas produções sobre raça e os homens gays que se identificaram com "O Quarto de Giovanni". "É engraçado que, naquele contexto, não se faziam conexões. Era como se eles lessem James Baldwins distintos."

Hoje, num mundo mais acostumado a fazer intersecção entre debates de raça, gênero e sexualidade, a leitura do americano se renova e se alastra. "Baldwin se tornou uma das vozes mais fascinantes do século 20 graças ao seu estilo lúcido, que impressiona pela atualidade", afirma Alice Sant'Anna, que o edita na Companhia das Letras.

Essa atualidade, germinada por autores como ele, o acolhe melhor como referência. Durante a conversa com o repórter, Macedo mostra um aviso que vinha nas primeiras páginas de uma edição de 1967 de "Numa Terra Estranha", na editora Globo —que, na tradução da Companhia, perdeu a primeira palavra do título.

"Este livro destina-se a leitores adultos: sob nenhum pretexto deve ser posto na mão de menores", alertava o texto, que logo em seguida saudava a obra como "um dos mais poderosos romances de nossa época".

Algo revelador de um crítico que consegue ao mesmo tempo combater e conciliar, como sugere Sant'Anna. "É uma proposta de fazer com que nós, brancos, percebamos o nosso lugar e, a partir daí, propor uma transformação."

"A maior crítica dele é à hipocrisia da América", afirma Allan da Rosa. "Ele apresenta a neurose do racista, mostra como há uma tormenta no puritanismo do branco, que elabora um sistema discursivo e ideológico para dar conta de ser pseudocristão, linchador e segregacionista. Esse é o grande abismo. Ele mergulha nessa subjetividade e em como como isso se esparrama nas almas negras."

Foi isso que tocou fundo em gente como sua amiga Toni Morrison. "Aqueles que viram a penúria de suas próprias imaginações no espelho que você mostrava a eles tentaram reduzir esse espelho a fragmentos que podiam classificar, tentaram desprezar os cacos", disse ela, emocionada, naquele discurso de 1987.

"Mas para os milhares e milhares que acolheram seus textos e se deram permissão para ouvir sua linguagem, por esse gesto apenas enobreceram a si mesmos", continuou ela, "se descobriram e civilizaram".

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