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Descrição de chapéu oriente médio 11 de setembro

Ocupação no Iraque pós-11 de Setembro foi trailer de crise atual no Afeganistão

Enviado da Folha ao país na época lembra cobertura jornalística da guerra

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São Paulo

Às 5h35 locais do dia 20 de março de 2003 (23h35 do dia anterior, no horário de Brasília), várias “bombas inteligentes” lançadas de embarcações norte-americanas atingiram um bunker onde os Estados Unidos acreditavam estar se reunindo Saddam Hussein e seu alto comando e outros pontos do governo do ditador iraquiano, em Bagdá.

Era o capítulo de "choque e pavor" da chamada guerra ao terror, que, como sua antecessora guerra às drogas, é interminável e fadada ao fracasso.

Naquela madrugada, havia 160 jornalistas de dezenas de países —os únicos brasileiros éramos eu e o repórter-fotográfico Juca Varella, enviados pela Folha. Continuaríamos sendo os únicos até pelo menos a queda da capital iraquiana e a consequente tomada do país pela coalizão liderada por EUA, Reino Unido e Austrália, que aconteceu em 7 de abril.

Os enviados especiais da Folha a Bagdá, Juca Varella, repórter-fotográfico, e Sérgio Dávila, repórter em zona de conflito durante Guerra do Iraque - Juca Varella

Foram dias duros, com muitas baixas. Pelo menos 16 jornalistas daquele grupo inicial morreram, ou 10% do total, o que fez da nossa profissão a maior taxa de letalidade do conflito de longe, maior que a dos soldados e dos civis de ambos os lados.

Entre as duas datas e pelo tempo em que estivemos lá, contamos com a companhia obrigatória de um tradutor iraquiano designado para nos acompanhar em todos os momentos pelo então Ministério da Informação, chefiado por Mohammed Saeed al-Sahhaf.

O ministro da Defesa de Saddam, o temível Ali Hassan al-Majid, era chamado de “Chemical Ali”, por ter comandado o massacre de curdos com armas químicas em 1987 e 1988, num dos genocídios mais cruéis da história recente. Já seu par na Informação, por seu jeito bonachão e uma capacidade de negar a realidade mesmo quando ela insistia em bater à porta, foi apelidado pelo nosso grupo de “Comical Ali”, o Ali Cômico.

Perto da queda da capital, por exemplo, quando os tanques da coalizão já eram visíveis no horizonte, ele continuava organizando entrevistas coletivas diárias nas quais dizia que tudo ia bem e que o “valoroso exército iraquiano” estava vencendo os “cachorros infiéis”.

Os tradutores respondiam ao ministro, que acompanhava o dia a dia dos jornalistas com interesse evidente. Afinal, havia ali enviados de jornais como o New York Times, o Washington Post, o Independent, o Times e El País, além de TVs como CNN, BBC, Al Jazeera e as três grandes abertas americanas, ABC, CBS, NBC.

O que eles reportavam frequentemente influenciava o andamento da guerra e certamente ajudava a moldar a opinião pública mundial. Os jornalistas chamávamos os acompanhantes obrigatórios de “minders”, inspetores ou controladores. A função oficial era nos ajudar nas conversas árabe-inglês; a extraoficial, relatar o que fazíamos, com quem falávamos e o que perguntávamos, com qual insistência e interesse.

Muitos colegas reclamavam de seus “minders”. Não nós. A geopolítica nos ajudava. Se por golpes dos celerados que tomaram o Itamaraty no governo Bolsonaro o Brasil caminha para uma irrelevância mundial, em 2003 o país era irrelevante naquele conflito por não ter “um cavalo naquela corrida”, na famosa frase em inglês. Assim, pouco interessava ao “Ali Cômico” o que queriam e o que faziam aqueles dois brasileiros cujo veículo tinha um nome impronunciável —“Fôurra” era o mais próximo que ouvíamos das pessoas ao nos apresentarmos.

Mas a sorte também ajudou. O “minder” que nos foi designado era uma pessoa de grande cultura geral, ótimo inglês e um pensamento crítico tanto em relação ao próprio governo, a ditadura sanguinária de uma família que por décadas subjugou seu povo como quis, quanto aos invasores, especialmente os Estados Unidos, com seus motivos sub-reptícios a justificar uma guerra que mais e mais se provaria desastrosa.

Quase 20 anos depois, o Iraque se mostrou um trailer do que viria a acontecer no Afeganistão no mês passado: saída sem planejamento da potência invasora, excesso de confiança na formação de um Exército nacional e de uma democracia local que colapsariam ao primeiro vento, ascensão de grupos extremistas que até então atuavam abaixo do radar.

A unir os dois conflitos, o mesmo presidente, o republicano George W. Bush, que enfiou o país em duas guerras e deixou os oito anos de governo sem capturar o mentor do 11 de Setembro, Osama bin Laden, que seria localizado e morto por seu sucessor, o democrata Barack Obama.

Duas décadas depois, eu localizei nosso tradutor morando num estado conservador nos EUA e trabalhando como profissional autônomo. Nós nunca perdemos de verdade o contato, embora a comunicação não fosse frequente. Ele nos ajudou bastante, por exemplo, quando voltamos ao Iraque em 2013, para cobrir a primeira década da guerra. Agora, aos 50 anos, ele me pediu para não ser identificado pelo nome e me deu o depoimento abaixo:

“Foi no início de janeiro de 2010 que tive de tomar a decisão mais difícil de minha vida: deixar para trás família, amigos e muitas memórias boas e ruins vividas por décadas. Como sempre, começar foi difícil, mas com determinação e autoconfiança minha esposa e eu conseguimos nos acomodar e fazer nossa vida continuar. Depois de quase 11 anos, alcançamos alguns de nossos sonhos decentes como família, incluindo nosso filho, agora com 10 anos.

Ao longo de todos esses anos, pude concluir que a invasão do Iraque em 2003 foi um dos maiores erros já cometidos pelos Estados Unidos. É verdade que o Iraque estava sofrendo durante o período de Saddam Hussein, mas agora está muito pior.

É uma comparação muito difícil e complicada de ser feita, mas em geral é como se você estivesse comparando duas pessoas: uma é brutal e má; a outra é desonesta e suja. De 2003 até hoje, o Iraque tem sido um dos lugares mais prósperos para todos os tipos de atrocidades.

Agora, existem diferentes tipos de lealdade, exceto a lealdade ao país. Tudo isso devido à falta de cumprimento da lei e da ordem, e esse foi o principal motivo que nos levou a sair. Pessoas boas são reprimidas e oprimidas, enquanto ignorantes e assassinos estão no poder.”

Erramos: o texto foi alterado

Os jornalistas da Folha voltaram ao Iraque para cobrir a primeira década da guerra em 2013, não 2011. 

 

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