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Descrição de chapéu 8 bilhões no mundo China

Crise demográfica se acentua, e população da China diminui pela 1ª vez em 62 anos

Com taxa de nascimentos mais baixa de que se tem registro e de mortes a mais alta desde 1976, país vê virada histórica de tendência

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São Paulo

A previsão para o início do declínio populacional da China era 2025. Em julho de 2022, dados de quase 30 províncias apontavam uma queda histórica no número de nascimentos, e autoridades de Pequim afirmaram que as taxas de natalidade do país continuariam a encolher por mais de um século.

Seis meses depois, a estimativa se provou incorreta. O Escritório Nacional de Estatísticas da China divulgou nesta terça-feira (17), ainda noite de segunda (16) no Brasil, dados que apontam que o declínio já começou. Em outras palavras, o número de mortes de chineses foi maior que o de nascimentos: em 2022, segundo os números oficiais, morreram 10,41 milhões de pessoas no país e nasceram 9,56 milhões.

Para um país que ainda é o mais populoso do mundo, o encolhimento demográfico de 850 mil pessoas pode até parecer proporcionalmente pouco importante —a fatia representa só 0,06% do total de 1.411.750.000 chineses. Mas seu peso mais simbólico que numérico aponta, na curva de crescimento local, uma alteração de rota que indica uma tendência preocupante para Pequim.

Estação de trem em Xangai em meio a aumento de viagens às vésperas do Ano-Novo Chinês - Hector Retamal - 11.jan.23/AFP

Além de atropelar a estimativa dos órgãos de estatística e saúde, o início do declínio representa um revés histórico para um país que, por anos, fez da pujança populacional um dos motores para o crescimento acelerado da economia —algo que, de resto, também refreou em 2022. É a primeira vez que a população chinesa recua desde 1961, quando o país enfrentava a pior fome de sua história moderna, decorrente da política de Mao Tse-tung, que ficou conhecida como Grande Salto Adiante.

"É importante entender esse decréscimo populacional dentro de um conjunto de desafios que a China enfrenta, como essa espécie de transição de modelo econômico", afirma Valéria Lopes Ribeiro, professora de relações internacionais e economia da Universidade Federal do ABC. "A economia muito fundada no que se poderia entender como um milagre econômico baseado em grandes investimentos hoje tenta migrar para um tipo muito mais baseado na inovação."

Nesse aspecto, a queda indica um possível comprometimento à ampla disponibilidade de mão de obra, outro pilar do sistema que vigorou até agora. Por outro lado, pode servir de catalisador para uma modernização. "Esse é o sentido, de transformar a economia chinesa em uma economia de alta renda, que consiga produzir com alta tecnologia, aumentar a produtividade e fornecer renda e riqueza a uma população que vai exigir cada vez mais."

O fator também é apontado por Marcos Cordeiro Pires, professor de economia política internacional da Unesp de Marília (SP), como forma de Pequim evitar que a crise demográfica tenha impacto negativo no bolso. "Ainda que haja um encolhimento no mercado de trabalho, a possibilidade de automação é grande. Há muito para avançar em aumento da produtividade para compensar a diminuição de trabalhadores."

Ainda de acordo com os dados do Escritório Nacional de Estatísticas, a taxa de nascimentos ao final de 2022 foi de 6,77 a cada mil habitantes, o número mais baixo de que se tem registro —em 2021, ela foi de 7,52. Na outra ponta está a taxa de mortes: de 7,18 em 2021, subiu para 7,37, marcando também um recorde de quase 50 anos —só foi maior em 1974, em plena Revolução Cultural.

Os números escancaram o fato de que, se foram eficazes nas últimas décadas, as políticas de natalidade de Pequim agora chegam a um cenário entre a descrença e o legado duvidoso.

A mais famosa delas foi a de filho único, vigente de 1979 a 2015. A lei permitia apenas um filho por casal e foi alvo de uma série de denúncias, de repressão do Estado a abortos forçados; em termos de eficácia para conter a explosão demográfica, porém, funcionou. Estima-se que tenha impedido o nascimento de cerca de 400 milhões de chineses —mais de um terço da população atual.

A rigidez, no entanto, criou raízes na sociedade, de modo que sua suspensão não veio acompanhada de um boom nos nascimentos. Mesmo a nova flexibilização —em 2021 Pequim passou a permitir que casais tenham até três filhos, antevendo a crise demográfica— ainda não surtiu efeitos significativos.

Em parte, por óbvio, porque demografia é uma ciência cujos resultados se avaliam a longo prazo, e mais ainda quando se trata do gigante asiático, que trabalha suas políticas públicas em uma lógica temporal diferente da que é vista no Ocidente. "Na China, a geração em idade fértil é em sua maioria formada por casais de filhos únicos. Ainda que haja políticas públicas de incentivo, reverter uma tendência cultural é muito difícil por parte de um governo" explica Pires.

Mas o maior obstáculo para que casais tenham mais filhos pode ter explicações, digamos, mais mundanas. Criar uma criança na China pode ser muito caro.

Para Evandro Menezes de Carvalho, coordenador do Núcleo de Estudos China-Brasil da FGV Direito Rio, o crescimento econômico gerou uma espécie de constrangimento para os jovens chineses. De alguma maneira, eles se viram forçados a escolher entre a pressão de constituir família antes dos 30 —o que implicaria arcar com as despesas de educar crianças em ambientes extremamente competitivos— e a possibilidade de conquistar bons empregos e independência financeira.

Os dados indicam que não foi uma escolha muito difícil. "O projeto familiar foi sendo postergado pelos jovens, e naturalmente isso tem impacto na taxa de natalidade", explica. Carvalho lista ainda desafios que a reconfiguração da pirâmide demográfica chinesa trará, como o aumento da demanda por serviços de assistência social em uma população cada vez mais idosa.

Pires, da Unesp, aponta ainda um aspecto sobre a urbanização que também diferencia o país da Índia —que, segundo projeções da ONU, deve passar a liderar o ranking do número de habitantes ainda neste ano. "Na Índia, a maior parte das famílias continua na área rural, onde serviços públicos são mais precários e a religião influencia muito o modo de vida." Na China, por sua vez, há 400 milhões de pessoas com renda de classe média concentradas em áreas urbanas —e a meta de Pequim é dobrar essa fatia.

Outro fator que pode ter contribuído para a desaceleração dos nascimentos foi a rígida política contra a Covid-19 imposta no país —as regras de quarentena só foram flexibilizadas pelo regime em dezembro passado, após uma série de protestos contestando as restrições mais duras. Segundo os analistas ouvidos pela Folha, porém, o impacto direto da pandemia sobre a crise demográfica ainda não podem ser apontados com precisão.

Pesquisas conduzidas em grandes cidades chinesas apontam que os casais até querem ter mais filhos, mas não tantos quanto o regime de Xi Jinping gostaria —ou precisaria.

Em Guangzhou, só 9% de mais de 23 mil entrevistados pela Academia de Desenvolvimento da População de Guangdong expressaram o desejo de ter três filhos ou mais. A maior fatia, mais de 80%, disse querer um único filho. Pesquisa semelhante com 2.060 pessoas em Pequim indicou que só 4,2% viam como alta a probabilidade de ter três filhos, mas a porcentagem subia para quase 35% na hipótese de haver mais políticas de incentivo do regime.

Isso tem ocorrido até agora em âmbitos municipal ou provincial. Em Nanchan, por exemplo, famílias com dois ou três filhos menores de 18 anos recebem um subsídio que varia de 300 a 500 iuanes (R$ 230 a R$ 384). Resta saber se medidas similares de abrangência nacional seriam capazes de reverter a tendência de declínio.

O Global Times, o mesmo jornal alinhado ao Partido Comunista Chinês que projetou o início do declínio populacional para 2025, levou horas para dar espaço nesta terça aos desafios que acompanham as novas estatísticas demográficas. Destacou, porém, a controvérsia em torno de uma pesquisa em que 80% dos estudantes universitários teriam apontado que ter dois filhos é o ideal para uma família —ainda que menos da metade do mesmo público deseje atingir esse ideal.

Colaborou Daniela Arcanjo

Erramos: o texto foi alterado

O número total da população da China foi incorretamente grafado em versão anterior do texto. O país tem mais de 1,4 bilhão de pessoas, não 1,4 milhão. Além disso, a diferença entre o número de mortes e o de nascimentos na China equivale a 0,06% do total da população, não a 0,6%.

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