Era Outra Vez

Literatura infantojuvenil e outras histórias

Era Outra Vez - Bruno Molinero
Bruno Molinero
Descrição de chapéu Livros

Nos 80 anos de 'Éramos Seis', saiba quem foi Maria José Dupré

Livro marcou época, foi adaptado para novelas, fez parte da coleção Vaga-Lume e teve Monteiro Lobato como padrinho

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Em 1943, há 80 anos, um anúncio da Companhia Editora Nacional nos jornais divulgava um de seus principais lançamentos. A propaganda dizia que o livro era "um romance onde tudo é vida" e "uma história para todas as mulheres do mundo". Como um carimbo de qualidade, destacava o "originalíssimo prefácio de Monteiro Lobato", que elogiava a obra escrita por uma tal de sra. Leandro Dupré.

O pseudônimo escondia Maria José Dupré, que naquela época adotava o nome do marido na hora de assinar sua ficção. O título? "Éramos Seis".

A escritora Maria José Dupré, em fotografia sem data
A escritora Maria José Dupré, em fotografia sem data - Folhapress

A história foi publicada como um romance para adultos e logo recebeu o pejorativo rótulo de "literatura feminina", mas foi se transformando ao longo das últimas oito décadas. Após a bênção de Monteiro Lobato, virou best-seller, foi atacado pela crítica, ganhou adaptações para a televisão na forma de novelas, migrou também para o rádio e para o cinema e acabou se consolidando mesmo como um clássico para jovens, após ser lançado pela famosa coleção Vaga-Lume, já nos anos 1970.

Aliás, a série que marcou gerações com títulos como "O Escaravelho do Diabo" e "O Mistério do Cinco Estrelas" também faz aniversário em 2023 e completa 50 anos. A estreia da coleção foi justamente com outra aventura de Dupré, "A Ilha Perdida", que vendeu 5 milhões de exemplares.

Mas o assunto aqui é "Éramos Seis". E, para falar do livro, é preciso voltar ao século 19. Maria José Fleury Monteiro nasceu em 1898 no que hoje é o norte do Paraná, numa família que pertencia a um ramo empobrecido dos quatrocentões Barros, os mesmos que batizam vias paulistanas como a própria alameda Barros, a rua Barão de Tatuí e a avenida Angélica.

Esse descolamento familiar, gerado por tensões entre parentes tradicionais e outros sem tanto poder econômico, iria mais tarde marcar toda a literatura da autora de "Éramos Seis".

Capa de "Éramos Seis", em edição clássica da coleção Vaga-Lume
Capa de "Éramos Seis", em edição clássica da coleção Vaga-Lume - Reprodução

Foi só depois de se mudar para São Paulo e se casar com o engenheiro Leandro Dupré que ela começou a de fato escrever, muito incentivada pelo marido. O pontapé foi um conto baseado numa história familiar, chamado "Meninas Tristes", publicado em 1939 no suplemento literário do jornal O Estado de S. Paulo. Na época, usou o pseudônimo de Mary Joseph, numa transformação mambembe de seu nome para o inglês.

Já com a assinatura sra. Leandro Dupré, estreou nos livros em 1941 com "O Romance de Teresa Bernard", que apresenta uma protagonista rica em salões luxuosos da alta sociedade. A edição saiu pela Civilização Brasileira, que havia sido comprada anos antes pela Companhia Editora Nacional, fundada por Monteiro Lobato, que era sócio do marido da autora em outra editora, a Brasiliense.

Como "Teresa Bernard" foi um sucesso de vendas, os caminhos foram rapidamente abertos para que dois anos depois a Companhia Editora Nacional apostasse em "Éramos Seis" —romance que iria se tornar o mais conhecido, vendido e atacado de Maria José. Para impulsionar as vendas, o próprio Lobato escreveu o prefácio das primeiras edições, que muitos afirmam ter sido pago pelo colega e sócio Leandro Dupré.

Todo mundo já deve ter ouvido falar da história, mas não custa fazer um rápido resumo. A trama acompanha Lola, uma mãe de classe média baixa que, ao longo de anos e de mais de 250 páginas, vê sua família se esfacelar por São Paulo. Marido, filhos, parentes, casa, tudo vai se perdendo numa narrativa que foi elogiada por Lobato e por críticos mais próximos, mas que foi duramente atacada por outros nomes da imprensa.

Segundo os que torceram o nariz, "Éramos Seis" tem construção pobre, é mal escrito, sem qualidades literárias e feito sob medida para "levar mocinhas às lágrimas".

Como sempre costuma acontecer, a verdade talvez esteja no meio do caminho entre o entusiasmo mercadológico de Lobato e o azedume dos críticos mais incisivos. De fato, Maria José Dupré não tem a profundidade e a mesma revolução estética de nomes como Clarice Lispector, que naquele mesmo 1943 publicou "Perto do Coração Selvagem".

Só que também é injusto chamar a sua literatura de pobre. É elogiável, por exemplo, a escrita simples, clara, direta e sem firulas. Não é à toa que, nos anos 1970, a coleção Vaga-Lume resolveu reeditar "Éramos Seis" para o público infantojuvenil, mantendo o texto original. Há na trama algo que capta o leitor, segura a sua mão e o guia pela história. Se isso ajuda a explicar o sucesso de vendas, ao mesmo tempo também dá pistas sobre a má vontade da crítica, acostumada a desprezar best-sellers desde sempre.

Vale lembrar ainda que, naqueles anos, era o regionalismo e a segunda fase do modernismo que costumavam ganhar os holofotes das discussões. "Fogo Morto", clássico de José Lins do Rego que fecha o chamado de ciclo da cana-de-açúcar na literatura, foi lançado também em 1943.

Já "Éramos Seis" opta por outro caminho. Abusa de tensões urbanas, usa São Paulo como cenário e, como mostra Bianca Ribeiro em seu mestrado na Universidade de São Paulo, de 2008, explora o contexto social paulista daquelas décadas sem sair de dentro do universo da casa, o que a pesquisadora define como um "realismo doméstico".

O descompasso entre crítica e público foi tamanho que ultrapassou até as fronteiras brasileiras. O livro foi rapidamente traduzido para o espanhol, o francês e o sueco. Ganhou adaptação para o cinema na Argentina já em 1945, além do rádio e da televisão, num fenômeno que não ficou isolado na linha do tempo —a última novela baseada nos personagens foi lançada em 2019, com Gloria Pires no papel de Lola.

Essa capacidade de escrever de forma direta fez com que a autora migrasse naturalmente para a literatura infantojuvenil propriamente dita. Seus títulos para esse público são editados ainda hoje, como o já citado "A Ilha Perdida", mas também "A Montanha Encantada", "A Mina de Ouro" e a série "Cachorrinho Samba", que ganhou o Jabuti em 1964 com um dos fascículos.

Mas, apesar de se consolidar na prateleira para jovens e crianças até depois de sua morte, em 1984, Maria José Dupré não deixou de lado os romances adultos, hoje esquecidos. É verdade que ela começou a carreira eclipsada pelo marido, sob nada simpático nome de sra. Leandro Dupré, mas é curioso notar que estudos feministas atuais ainda não se debruçaram com atenção sobre esses livros.

Afinal, suas protagonistas são sempre mulheres. Obras como "Gina", "Angélica" e "Dona Lola" apresentam personagens femininas que lidam com temas como o trabalho, o divórcio e as tensões de um Brasil que teimava em colocar mulheres em espaços determinados. Há 80 anos, "Éramos Seis" chegava às livrarias com prefácio de Monteiro Lobato e o nome do marido da autora na capa, é verdade. Mas também com uma dedicatória quase revolucionária: "Às mulheres que trabalham".

Éramos Seis

  • Preço R$ 69 (256 págs.)
  • Autoria Maria José Dupré
  • Editora Ática

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