"O politicamente correto está nos levando a reduções. Parece que agora só podemos contar a história da doce vovozinha e dos simpáticos netinhos", provoca a escritora colombiana Irene Vasco. "Isso se os críticos não disserem que doce causa diabetes e que simpático é uma palavra masculina, o que traumatiza quem ainda não decidiu o gênero ao qual pertence."
Foi assim que a autora abriu o segundo dia do Seminário Ibero-americano do Livro Infantil e Juvenil, organizado nesta semana de forma online pelo IBBY, sigla em inglês para a Organização Internacional dos Livros para Jovens.
À primeira vista a frase pode parecer de alguém que não entendeu as demandas contemporâneas ou que tremula a bandeira da liberdade acima de tudo e de todos. Mas não é nada disso. Filha de uma musicista brasileira, Vasco é uma das principais pensadoras do livro infantil e aponta a sua crítica contra aqueles que desejam censurar a literatura em nome de uma suposta preservação da infância.
A fúria censória busca no mundo inteiro domesticar livros que causam turbulências, geram medos, produzem estranhamentos e usam o simbólico para conversar com os degraus mais profundos do nosso inconsciente. "É como se o século 21 nos levasse para um passado carregado de silêncios", diz a autora, que tem poucos livros publicados no Brasil —entre eles, "Letras de Carvão" e "A Professora da Floresta e a Grande Serpente", ambos lançados pela Pulo do Gato.
Esse desejo de proibição aparece tanto na direita quanto na esquerda. Com justificativas de polaridades opostas, os dois lados batalham lado a lado quando o assunto é a censura de contos de fadas, por exemplo. Para uns, são narrativas cheias de imoralidades, demônios e atentados contra a religião. Para outros, contos que preservam os piores estereótipos de gênero.
"Essas histórias são metáforas da vida, reflexos dos conflitos da humanidade", afirma Vasco. "Representam e simbolizam nossos sentimentos e emoções. Exibem a busca por respostas para perguntas existenciais. Confirmam as nossas intuições. São encontros com tempos milenares, quase desconhecidos para os leitores contemporâneos."
Para ela, censurar essas narrativas, picotá-las ou forçá-las a se encaixar numa forma que agrade às demandas atuais está longe de ser a solução. "Eu me recuso a reduzir a arte a um panfleto."
Mas não é o que anda acontecendo no Brasil e no mundo. Vou citar só dois casos recentes. No Reino Unido, a Puffin Books, que pertence ao gigante global Penguin Random House, comunicou que passaria a editar, suprimir e mudar trechos de livros de Roald Dahl, autor de clássicos como "Matilda" e "A Fantástica Fábrica de Chocolate". Segundo a editora, eles poderiam soar ofensivos às crianças e aos jovens de hoje.
As partes trocadas traziam sobretudo palavras relacionados a peso, saúde mental, violência, gênero e questões raciais, que seriam cortadas ou reescritas. Mais tarde, após a reação negativa, que incluiu até o primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, a editora voltou mais ou menos atrás —agora as histórias terão duas versões, uma alterada e outra original.
Nas últimas semanas, nos Estados Unidos, a Scholastic, uma das principais editoras do mundo, pediu que Maggie Tokuda-Hall mudasse um trecho do livro "Love in the Library". Nele, a certa altura, a autora cita a "tradição profundamente americana do racismo". Segundo Tokuda-Hall, editores acharam o trecho político demais para crianças e solicitaram a mudança, sobretudo por causa da recepção da obra nas escolas. Após a repercussão, a empresa também voltou atrás nesse caso —mas a escritora se recusou a publicar o livro com a editora, mesmo com a manutenção do trecho original.
Há dezenas, centenas, de outros casos no mundo e no Brasil. Para quem quiser saber mais, escrevi recentemente na Ilustrada sobre o assunto. É possível ler a análise clicando aqui.
"Essa limpeza tira tudo o que a literatura pode oferecer. Os livros trazem a morte, a dor, as esperanças, os desejos, os medos. São um reflexo da humanidade", diz Vasco. "Com a censura, como fica esse reflexo? Como vamos nos identificar? Por que ler, se não vamos encontrar nada?", pergunta.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.