"Existe uma ideia de que criança não gosta de poesia. Mas isso é uma bobagem danada, um papo furado", diz Leo Cunha. "Crianças adoram, sempre viajam nos poemas. O que existe é o professor mal formado. O professor, os pais e os bibliotecários que não leem poesia."
O diagnóstico não é feito só por um escritor que completa três décadas de literatura, com cerca de 80 livros publicados, 20 deles com poemas. É de alguém que vive desde a infância mergulhado numa certa poética da vida.
Leo nasceu Leonardo Antunes Cunha e vive desde cedo cercado de livros. A mãe, Maria Antonieta Cunha, criou em 1979 a livraria infantil Miguilim, em Belo Horizonte. Depois transformada em editora, a casa fez com que Leo tivesse contato ainda jovem com nomes formadores da literatura infantojuvenil brasileira, entre eles Bartolomeu Campos de Queirós, Angela-Lago e Elvira Vigna, por exemplo.
Já seu avô, ferroviário e pai de Maria Antonieta, costumava declamar poemas para o neto, com quem brincava com trava-línguas, piadas e trocadilhos, além de andar sempre com um livro embaixo do braço —uma edição de "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, romance que leu ininterruptamente nas décadas de 1960 a 1990.
"Ele terminava e recomeçava logo a leitura. Escrevia nas margens, guardava pétalas no meio das páginas, anotava pensamentos, grifava frases", conta Leo. "Foi quando descobri que um livro é interminável."
Essa atmosfera poética familiar brota agora de sua obra mais recente, mas a partir de outra geração. "O Livro dos Talentos", recém-lançado pela editora SM, é formado por 48 capítulos curtos, como verbetes de almanaque. Nele, conhecemos a história de dois irmãos —um mais novo, o narrador que ainda busca o seu talento e o seu lugar no mundo, e a mais velha, que é admirada pelo caçula.
Com estrutura fragmentada, a obra pode muito bem ser lida fora de ordem. É fácil transitar, se perder, ir e vir até esbarrar em pérolas como o capítulo "Filósofo": "O talento do filósofo é falar baixinho, porque seus pensamentos são muito altos".
"Mesmo que seja fragmentado, existe no fundo um conflito. Acho que, lendo na ordem, você pega melhor essa relação do narrador com a irmã, que é um pouco inspirada na infância dos meus filhos", diz Leo, que, aos 57 anos, é pai de uma filha de 23 e de um filho de 15.
Ao longo da trama, o garoto investiga a sua vocação de cientista, assombra-se com a habilidade da irmã de conter um enxame de abelhas, sonha em ser anjo, múmia, marciano, robô, cigano, fulano. E, junto a tudo isso, homenageia nas entrelinhas o próprio livro e a literatura.
Tanto que um dos capítulos é dedicado aos poetas. Outro, aos bibliotecários. Há ainda atenção para dicionaristas, jornalistas e tradutores, que são definidos assim: "Traduzir é como fazer café. Você pega um texto e o derrama no filtro. As ideias passam, quentinhas, pro outro lado, mas a língua, mesmo, fica".
É justamente essa aproximação entre o poético e o narrativo, entre a imagem e a ação, que vem definindo a obra do autor nos últimos anos. "Venho gostando de usar a poesia como gancho para pequenos textos de prosa. É como se a poética fosse o ponto de partida que leva à narrativa."
Mas isso não seria um jeito de tentar driblar a resistência de leitores, professores e editores em relação à poesia e transformar a obra em algo mais palatável comercialmente?
"O poema ainda sofre uma resistência maior do que a prosa em escolas, editoras e livrarias. Se eu tivesse apresentado esse mesmo 'O Livro dos Talentos' em versos, tenho a sensação de que ele teria dificuldade maior na recepção."
Mas Leo sublinha que essa objeção é coisa de adulto. "A infância é poética. A poesia está na cantiga de roda, na cantiga de ninar, na parlenda, no trocadilho, nas adivinhas, no trava-língua", diz.
"Foi o tradicionalismo da educação que inventou a pecha de que a poesia é só lírica e romântica —e, portanto, fora do interesse da infância, porque não é divertida ou porque é difícil. Mas esse tipo é só uma fatiazinha da produção. A poesia é muito, muito mais."
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