Praça do Leitor

O blog das produções artísticas dos leitores da Folha

Praça do Leitor - Interação
Interação

A arte tem culpa de quê?

Leitora questiona o mérito de ataques de ativistas a obras de arte

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Emma Charlotte

Foi no tumulto do segundo turno das eleições brasileiras de 2022 que me deparei com a notícia, publicada nesta Folha, de duas ativistas que jogaram sopa de tomate em uma pintura de Vincent Van Gogh na National Gallery de Londres. Protestavam contra o uso desenfreado de combustíveis fósseis.

Ativistas colam as mãos na parede após jogar sopa de tomate no quadro "Girassóis", de Vincent Van Gogh, na National Gallery, em Londres - Just Stop Oil - 14.out.2022/Reuters

Não imaginava que viraria uma tendência, uma vez que as ativistas foram soltas, sob fiança. Depois, chegou a vez do Museu Barberini, em Potsdam, capital do estado de Brandemburgo e vizinha a Berlim. Dessa vez, o quadro "Les Meules", de Claude Monet, foi atingido com purê de batatas. Percebi que seria, sim, uma tendência.

Dois dias antes, em Florença (Itália), ativistas colocaram as mãos sobre o vidro que protegia "A Primavera", do gigantesco Botticelli. Foram expulsos da galeria Uffizi, simplesmente um dos mais antigos e prestigiados museus de arte do globo. Detalhe, a obra de Botticelli tem mais de meio milênio de idade.

Mas não parou por aí. No dia 4 de novembro os mesmos corajosos do Ultima Generazione (aparente braço italiano do Letzte Generation alemão) atacaram outro quadro de Van Gogh, desta vez na galeria do Palazzo Bonaparte, em Roma. Diferentemente do último protesto deles, voltaram com a intenção de jogar algo na pintura. A "homenageada" da vez foi sopa de ervilha. O quadro foi "O Semeador".

No dia 5 de novembro, foi a vez de Goya ser alvo. Duas moças se colaram a duas pinturas do mestre espanhol e picharam "1,5°C" entre as imagens. Dez dias depois, a pintura "Morte e Vida", de Gustav Klimt, foi atingida por um misterioso líquido preto (petróleo, talvez?). Aparentemente (exceção feita a Botticelli) essas moças e esses moços têm uma preferência por impressionistas.

Dados os fatos, volto a minha pergunta inicial: arte tem culpa do quê? Esta Folha publicou colunas e artigos com um princípio de debate sobre se esses métodos são ou não são legítimos.

As mudanças climáticas nos levarão a um total desequilíbrio do planeta, podendo tornar a vida para nós, humanos, impossível ou pelo menos muito pior, com um sem fim de consequências trágicas para nossa saúde e bem-estar. Sem contar em um avultado número de espécies que desaparecerão para sempre.

Devemos, sim, mudar nossa matriz energética, proteger os ecossistemas e nos atermos, cada vez mais, às questões climáticas. Mas, junto-me aos comentaristas supracitados: é esta a melhor maneira de chegarmos a esse debate?

Ao ver desta humilde aspirante a artista, não. O que Van Gogh e Monet fizeram contra a natureza? Os próprios ativistas mencionam que esses pintores, como traço de sua época, eram amantes da natureza.

A arte é um patrimônio de todos os seres humanos. Ela serve para engrandecer nossos espíritos e salvar nossa mente. Os autores as conceberam como forma de suas expressões mais íntimas. A arte também sempre foi revolucionária e em algo progressista.

Em que um quadro tem relação com as grandes petrolíferas poluidoras? Ou talvez esses sectários vejam a arte como uma propriedade privada das elites. Portanto, destruir a arte seria destruir as posses da elite financeira europeia? Não sei, e nem quero saber, o que bulhufas se passa na cabeça desses sectários criminosos. Não quero nem andar na mesma calçada que qualquer um deles. Vai que passem a achar que eu danifico o ambiente e preciso ser removida pela força. Afinal, o objetivo último dos sectários é se afundar cada vez mais em seu fanatismo delirante.

Em que destruir quadros ajuda na conscientização ambiental? Chama a atenção mais para os ativistas do que para a causa. O jornalista Reinaldo Azevedo diz que devemos tomar cuidado para não colocar "o Chica Bom na boca do inimigo". Em vez de se atentar para a consciência de que nada adiantará a arte se o nosso planeta colapsar, pinta os ativistas ambientais como um todo (infelizmente) como sendo "baderneiros incendiários", gerando assim repulsa à causa.

Pior, cria a ideia de que ou se tem preservação ambiental ou se tem arte. Os dois mundos não poderiam coexistir. Portanto, quem aprecia as artes, e são muitos o que o fazem, ficarão de qual lado? Tenho certeza de que os executivos das grandes petrolíferas deram muitos sorrisos com esses "protestos". As petrolíferas posam como defensoras das artes, e esses valentes, como destruidores desta.

Logo estarão a espalhar essa ideia: de que todo protetor do ambiente que destruir pinturas. Afinal, já se criou a ideia de que todo social-democrata quer tomar a minha casa; de que pessoas homo ou biafetivas querem impedir as pessoas hétero de se casar; ou mesmo que as pessoas trans se querem decepadoras de genitais alheios. O absurdo existe. E as pessoas comuns, por ingenuidade ou maldade, acreditam nesses absurdos. Quando o fato "ocorre", a justificativa aumenta exponencialmente. Esses "ativistas" estão congelando o Chica Bom. Logo o colocarão na boca do inimigo.

É claro que as pautas progressistas precisam avançar qualquer que seja a gritaria do outro lado. Mas, para tudo na vida há método, há meio. Est modus in rebus, já dizia Horácio. Qual será o próximo alvo? As apresentações orquestrais? Uma boa. Afinal, os músicos contribuem com o genocídio ambiental usando montes de papel. Sem falar nos muitos instrumentos que são feitos de madeira (cordas e sopros-madeira).

A música se inspira e se baseia na natureza na mesma medida que o mundo da pintura. Faz-se mister lembrar as Quatro Estações do mestre veneziano Antonio Vivaldi. Na primavera, ele usa o violino para imitar os cantos dos passarinhos. No verão, ouve-se a fúria das torrenciais e repentinas chuvas veranis. O outono nos contempla com as alegres danças camponesas, pessoas que não são suspeitas de viverem longe da natureza. Já o inverno nos traz a violência dos frígidos ventos do Norte.

Mas, logo chegará a vez da música. Não creio que esses jovens tenham algo contra a arte per se, só carecem de organização, ou querem mesmo chamar a atenção pelo jeito errado e mais fácil. Destruir a arte é um crime contra a cultura universal e conta a humanidade. Lembro-me de um grupo na Alemanha em 21 de junho de 1933 que iniciou uma queima de livros. Quem foram mesmo? Logo partituras de compositores judeus foram para a mesma pira flamejante.

"Mas qual relação tem esse fato com os ativistas nos museus, ignóbil senhorita"? Usar a arte como alvo. Novamente: não sei se são apenas desastrados, ou se realmente têm algo pessoal contra os quadros. Mas a arte não deve ser o alvo. Não sou nem a favor dos que interrompem apresentações de Richard Wagner, infame operista alemão que era antissemita delirante até o último tutano dos ossos.

Apesar de não querer contato com vocês, valentes atacantes de quadros, e de saber que não me lerão, deixo uma humilde sugestão. Por que não pintam quadros, ou fazem imagens digitais, mostrando o possível futuro sombrio que teremos se as mudanças climáticas não forem interrompidas? Se existe algo que faz tremer o coração de todo ser humano, é a certeza da morte. Sejam autores de quadros em estilo neo-vanitas, demonstrando como será a catástrofe que nos aguarda.

Por fim, respondendo a mim mesma: a arte não tem culpa de nada. Ela é a expressão e patrimônio de todos os seres humanos, e aos que a atacam, que seja dado o devido tratamento, com respeito absoluto ao Estado de Direito. Por favor, ativistas ambientais, façam a devida crítica, para que todo o seu míster movimento não seja maculado por meia dúzia de agitadores. Temos de juntar forças pela preservação ambiental, e não contra.

Emma Charlotte escreve sob pseudônimo pois já sofreu ameaças.

O blog Praça do Leitor é espaço colaborativo em que leitores do jornal podem publicar suas próprias produções. Para submeter materiais, envie uma mensagem para leitor@grupofolha.com.br

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.