Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Nature apresenta 2 parapsicodélicos contra depressão

Compostos sob medida para receptor de serotonina dispensam efeito subjetivo

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São Paulo

A busca paradoxal por substâncias similares a psicodélicos que tenham efeito antidepressivo, mas não desencadeiem viagens, deu novos passos na última edição da Nature. Dois compostos parapsicodélicos foram apresentados por um grande grupo de pesquisadores (inclusive um brasileiro), até aqui testados só com camundongos.

O artigo é para lá de técnico, não vale a pena tentar dar os detalhes aqui. Basta dizer que o grupo testou virtualmente milhões de moléculas possíveis para ver se se encaixavam bem no receptor cerebral 5HT2A para o neurotransmissor serotonina, a mesma porta de entrada de células nervosas utilizada por psicodélicos clássicos como LSD, psilocibina (dos cogumelos "mágicos") e DMT (da ayahuasca), que vêm sendo estudados para tratar depressão e outros transtornos mentais.

Representação colorida de moléculas projetadas em computador
Modelo da molécula (R)-69 interagindo com receptor 5HT2A - Divulgação/Luan Carvalho Martins

O estudo, que durou sete anos, foi liderado por Bryan Roth, da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, e Jonathan Ellman, da Universidade Yale, ambas nos EUA. O brasileiro é Luan Carvalho Martins, da UFMG, que participou da pesquisa quando estava na Universidade da Califórnia em São Francisco.

Depois de testar in silico --ou seja, em computadores-- o encaixe das moléculas na fechadura do 5HT2A e refinar a análise desse acoplamento, o time chegou a duas substâncias mais promissoras, (R)-69 e (R)-70. O passo seguinte foi testar seus efeitos antidepressivo e psicodélico com a ajuda de roedores.

Existem modelos robustos e experimentos que se podem fazer com camundongos para verificar comportamentos análogos à depressão e à "viagem" em seres humanos. No primeiro caso, pode-se quantificar por exemplo a anedonia (prostração) dos bichos. No segundo, um movimento típico de cabeça (head-twitch) desencadeado nesses animais por drogas alteradoras da consciência (em humanos).

Os testes indicaram resultado antidepressivo comparável aos de psicodélicos como psilocibina e DMT. Em contrapartida, não induziram uma quantidade significativa de movimentos de cabeça.

"Não sabemos se vamos ver os mesmos efeitos em pessoas", afirmou Roth num comunicado da Universidade da Carolina do Norte. "Mas temos esperança de descobrir isso. Seria um lance decisivo no jogo criar uma terapia de dose única e efeito longo para ajudar pessoas com depressão resistente a tratamento e outras condições."

Essa é uma proposta controversa no meio de ciência psicodélica, pois vários pesquisadores consideram que, para a psique humana, remissão ou cura de transtornos de humor como a depressão dependem da experiência subjetiva propiciada pelos modificadores de consciência. É evidente que há mecanismos bioquímicos por trás do que se chama de fenomenologia, mas o conteúdo psíquico aflorado durante a experiência psicodélica seria determinante para os benefícios.

"O trabalho não investigou essa dimensão do efeito farmacológico, isto é, a interação entre os efeitos psicodélicos e o efeito antidepressivo", ressalvou Luan Carvalho Martins, 34, ao ser questionado pelo blog sobre o desacoplamento entre a experiência psicodélica subjetiva e o resultado terapêutico. "Acho que ir além do que os dados mostram sobre isso é perigoso", ponderou o pesquisador da UFMG.

O estudo na Nature não investigou a relação dos compostos (R)-69 e (R)-70 --já patenteados-- com neuroplasticidade, a criação de novas conexões neuronais que se acredita estar por trás do potencial terapêutico de psicodélicos. É possível, afinal, que drogas como (R)-69 e (R)-70 possam induzi-la sem acarretar ao mesmo tempo as visões, memórias e emoções características das viagens lisérgicas.

Fractais em tons de vermelho, amarelo e marrom sobre fundo preto
Ilustração - Raphael Egel

A associação entre psicodélicos e neuroplasticidade foi também objeto de uma longa e esclarecedora revisão, semana passada, noutra publicação do grupo Nature, Neuropsychopharmacology. Há muito pano para manga ali.

A parte que interessa para o nexo entre bioquímica e fenomenologia da psicodelia está no trecho em que os autores Abigail Calder e Gregor Hasler, da Universidade de Friburgo (Suíça), assinalam que a janela de neuroplasticidade aberta pelos psicodélicos coincide temporalmente com os efeitos subjetivos em seres humanos.

Em outras palavras, os conteúdos que podem tornar-se relevantes para elaboração mental, introspectivamente ou durante psicoterapia, afloram num estado cerebral muito flexível, aberto a novas conexões. Elas ficariam assim disponíveis para abrir ou estabilizar alternativas de compreensão das origens do sofrimento psíquico --sem falar da inundação de empatia e aceitação em geral deflagrada sob efeito de psicodélicos, que facilitam reconhecer, falar e atuar sobre elas.

Esse estado sugestionável pode ser também uma faca de dois gumes: uma experiência psicodélica ruim (viagem ruim, ou bad trip) tem o poder de deixar marcas indeléveis na pessoa. Daí a recomendação recorrente para dedicar muita atenção ao setting, à situação (local, ambiente, companheiros, guias, música etc.) em que a viagem ocorrerá, de modo a diminuir o risco de vivências traumáticas.

São raros, mas há casos de alucinações persistentes, lampejos da viagem ruim a repetir-se muito tempo depois de terminada a jornada. Outro risco não desprezível é o de abuso da parte de terapeutas psicodélicos e guias espirituais, que podem tomar partido dessa abertura mental para incutir suas próprias explicações ou até praticar atos sexuais.

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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Não deixe de ver também as reportagens da série "A Ressurreição da Jurema":

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

Cabe lembrar que psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

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