Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Liberada, psilocibina de cogumelos tem estreia cara no Oregon

Em contraste, controle médico pode tornar terapia psicodélica mais acessível nos EUA

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Cogumelos multicoloridos
Ilustração de Raphael Egel - @liveenlightenment

Autoridades de saúde do estado americano de Oregon concederam na sexta-feira (05) a primeira licença oficial para um centro de serviços oferecer cogumelos psicodélicos sem necessidade de indicação médica. Pioneira nos EUA, a regulamentação estreia sob críticas porque as sessões terapêuticas serão muito caras.

A licença saiu para a clínica Epic Healing, cujo primeiro nome corresponde à sigla em inglês de Centro Integrativo de Psilocibina de Eugene, segunda cidade mais populosa do estado. Os fungos Psilocybe cubensis, única espécie autorizada em Oregon, contêm psilocibina, composto psicoativo que se encontra em testes clínicos de fase 3 para tratar depressão.

As opções mais baratas oferecidas pela Epic custarão US$ 300 (cerca de R$ 1.500), em sessões de grupo com cinco pessoas, e US$ 500 (R$ 2.500), na modalidade individual. Nestes casos, porém, trata-se de uma microdose, entre 100 e 400 miligramas, quantidade que não produz efeito psicodélico perceptível.

Na outra ponta da tabela, para receber uma dose cheia de 2,5 a 4 gramas, o psiconauta terá de desembolsar US$ 3.500 (mais de R$ 17 mil) e ficará sob supervisão de um facilitador por seis horas, tempo estimado da viagem. Mas quantas pessoas poderão despender quase dez dólares por minuto de estado alterado de consciência?

Tabela com preços de 300 a 3.500 dólares
Tabela de preços de psilocibina na clínica Epic em Eugene, Oregon - Reprodução

Por esse preço um americano consegue pagar sete dias de retiro com duas sessões de ayahuasca na Costa Rica, dormindo num bangalô com cama queen, pensão completa e traslado do aeroporto. Apesar da conta salgada, a Epic espera atender os primeiros clientes já no mês que vem.

A ideia original por trás da Medida 109, liberação da psilocibina aprovada pelos eleitores de Oregon em 2020, era bem outra: evitar que benefícios dos cogumelos ficassem sob controle da corporação médica. Seu uso terapêutico ou para autoconhecimento nunca deixou de existir, embora ilegal, e a descriminalização votada serviria para que se tornasse acessível a qualquer pessoa.

O modelo alternativo ao monopólio biomédico pretendia facultar a prestação do serviço a terapeutas alternativos e xamãs urbanos que resistiram décadas na clandestinidade, após a reação proibicionista contra psicodélicos dos anos 1960-70. Não é preciso ser médico nem psicólogo para obter registro de facilitador.

Há muitas exigências, contudo. Com cursos e licenças obrigatórios para credenciar-se como facilitador em Oregon, o investimento inicial pode alcançar US$ 20 mil. Ou mais ainda, se a pessoa quiser abrir seu próprio centro de serviços, para o qual precisará de outra licença com custo de US$ 10 mil.

Não espanta que apenas cinco registros de facilitador tenham sido expedidos pela Autoridade de Saúde de Oregon (OHA). A repartição também exige credenciamento de laboratórios de testagem dos cogumelos, outra licença de US$ 10 mil (até aqui, apenas uma concedida), para garantir pureza e identificação da espécie autorizada.

O Colorado seguiu a trilha aberta em Oregon e realizou em 2022 referendo com vistas a autorizar a psilocibina e, em alguns anos, outros psicodélicos. A regulamentação ainda não entrou em vigor e, mesmo buscando corrigir as distorções no outro estado, é incerto se resultará em serviços menos exorbitantes ou se escapará das críticas à liberação da maconha, objeto de um comércio elitizado.

A Califórnia também tenta encontrar um caminho entre clandestinidade e acessibilidade para plantas e fungos psicodélicos. O Senado Estadual reviveu um projeto de lei com tal propósito (Bill 58), que além da psilocibina abrange substâncias como dimetiltriptamina (a DMT da ayahuasca), ibogaína e mescalina, mas deixa de fora sintéticos como LSD e MDMA previstos na versão anterior da norma proposta.

Vários outros estados dos EUA, condados e municipalidades cogitam adotar legislações semelhantes. Na Austrália e em Alberta, no Canadá, médicos já podem prescrever psicodélicos para transtornos psíquicos, com restrições. No Reino Unido, cresce debate para relaxar a proibição do uso clínico de psilocibina.

O modelo medicalizante, por outro lado, teve avanço importante nos Estados Unidos. A Associação Médica Americana (AMA) oficializou semana passada uma rubrica (CPT, abreviação em inglês de terminologia atual de procedimento) para tratamentos psicodélicos, o que permitirá a médicos e clínicas buscarem ressarcimento de seguros de saúde para essas terapias, quando aprovadas.

A iniciativa precoce, que se antecipa à própria autorização pela agência de fármacos FDA, resulta da aliança peculiar entre dois protagonistas do ressurgimento psicodélico para a medicina. De um lado, a empresa Compass Pathways; de outro, a ONG Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês).

A empresa britânica representa o polo oposto das ideias "comunitárias" que nortearam o processo no Oregon. Ela se baseia em propriedade intelectual sobre a aplicação de seu composto COMP360 –que os críticos dizem ser indistinguível da boa e velha psilocibina– para tratar depressão. A Compass está à frente dos testes de fase 3 que devem conduzir à autorização pela FDA, em 2024 ou 2025.

Um pouco mais adiantada está a Maps com seu protocolo de terapia assistida por MDMA para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), tendo já concluído a fase 3 dos ensaios clínicos. Fruto de três décadas de militância de figuras meio hippies na origem, como Rick Doblin, a Maps evoluiu para uma configuração cada vez mais corporativa, na visão de aliados.

Em junho a Maps realizará em Denver, capital do Colorado, a quarta edição da conferência Psychedelic Science. A estimativa é que mais de 10 mil pessoas compareçam.

Em comum, as duas organizações têm a estratégia de garantir aprovação da FDA para terapias psicodélicas, condição para um dia contar com reembolso por seguros de saúde. Seria a melhor maneira, argumentam, de torná-las acessíveis ao enorme contingente de pessoas que hoje não encontram alívio na farmacopeia disponível.

A julgar pelos preços de estreia no Oregon, é possível que Compass e Maps estejam com a razão. Mas também é provável que, a exemplo da cânabis, aplicações médicas sejam sucedidas pela descriminalização do uso adulto e que as pessoas terminem preferindo ingerir ayahuasca, cactos e fungos em cerimônias religiosas ou contexto comunitário –como de resto já fazem há milênios.

--------------------------------

AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.

Não deixe de ver também na Folha as reportagens da série "A Ressurreição da Jurema":

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.