Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Descrição de chapéu Folhajus

A esfinge lava-jatista, capítulo 2

Augusto Aras tem muitas faces; comecemos pela omissão, sua arte de não fazer fazendo

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Autor do verso "democracia eu te amo, eu te amo, eu te amo", numa cena que Dias Gomes não viveu para assistir, Augusto Aras deve explicações justamente a ela, a democracia. Fernando Pessoa, para quem "todas as cartas de amor são ridículas" e "não seriam cartas de amor se não fossem ridículas", notaria, diante da cena, que ali só sobrou mesmo o ridículo.

A tentação da galhofa, porém, não pode ofuscar os sérios danos que Aras e sua equipe promoveram contra o Estado democrático de Direito e o Ministério Público Federal. Ainda está por se fazer uma anatomia abrangente e sem firulas de sua gestão. Um esforço por contar as vítimas e aferir os prejuízos institucionais.

Neste capítulo, trato da omissão, a dimensão mais notória do repertório destrutivo de Aras. Nos dois capítulos seguintes, falarei das práticas de intimidação e de bloqueio do MPF. Tudo sob o insólito mantra da "descriminalização da política".

O procurador-geral da República, Augusto Aras, em reunião com representantes da imprensa internacional sobre o sistema eleitoral brasileiro, em Brasília
O procurador-geral da República, Augusto Aras, em reunião com representantes da imprensa internacional sobre o sistema eleitoral brasileiro, em Brasília - Lúcio Távora - 11.jul.22/Xinhua

Augusto Aras não foi um simples engavetador, de estilo cordato e discreto, como Geraldo Brindeiro nos anos 90. Os tempos eram incomparáveis. O protagonismo do STF e a delinquência bolsonarista exigiram dele engenho para esconder sua inação. Precisava gerar a impressão de que, enquanto nada concreto saía da Procuradoria-Geral da República, algo fazia. Quando Aras enumera suas iniciativas, pergunte qual foi o resultado.

Em termos estatísticos, a omissão está documentada. Pesquisa da FGV demonstrou que a PGR ajuizou 2% das ações contra o Executivo no período bolsonarista. Aras arquivou sumariamente mais de 100 representações contra Bolsonaro.

Processualmente, operou um truque: em vez de abrir inquérito, preferiu "apurações preliminares". Assim, nem supervisão do STF sofria. Dos poucos inquéritos instaurados, em geral, mandou arquivar. Os que seguem abertos, nenhuma novidade. Nunca se soube que investigações, de fato, promoveu.

Mas vale entrar em exemplo substantivo. A violência bolsonarista contra a democracia Aras percebeu como "liberdade de expressão". O negacionismo morticida na pandemia ele entendeu, veja só, como "liberdade de expressão".

Diante do vandalismo eleitoral de Bolsonaro, optou pelo silêncio. Diante da alegação de prevaricação de Bolsonaro no caso do superfaturamento da Covaxin, definiu que presidente não prevarica por ser "agente especial". Inventou direito penal alienígena aplicável somente a Bolsonaro. Nem se deu ao trabalho de contar de onde vem tal doutrina.

Diante do relatório da CPI da Covid, decretou sigilo e, em vez de apresentar qualquer denúncia, mandou incorporar pedaços do relatório em casos existentes no STF. Não se tem mais notícia. Sobre Salles, Pazuello e Lira falamos depois.

Diante do 8 de janeiro, foi contra busca e apreensão na casa de Bolsonaro. Defendeu soltura de Anderson Torres. Não fosse Alexandre de Moraes e o celular de Mauro Cid, que Aras não quis conhecer, pouco se saberia do plano de golpe.

Não há operador mais consequente pela anistia de Bolsonaro.

Na tentativa de polir a imagem, Aras, de um lado, tenta se apropriar das conquistas de procuradores da república que agiram sob risco de represália do PGR. De outro, busca terceirizar responsabilidade pelas omissões a seus subordinados diretos. Só compra essa história quem não conhece como se articulam autonomia e deveres funcionais no MPF.

Aras também terceiriza responsabilidade ao STF quando afirma que a corte homologou seus pedidos de arquivamento. Não conta que o STF não tem poder de recusar arquivamento, exceto se rompesse com o cânone do sistema acusatório.

Temos o "segredo de Polichinelo", a "vitória de Pirro", a "Lei de Gérson" para expressar signos do caricato, do burlesco, do malfeito. Agora temos o "amor de Aras". Pela democracia.

Uma trágica piada que não impede agentes do governo de defenderem sua recondução a um terceiro mandato na PGR. Ou de um simpatizante da mesma estirpe. Podem acabar contribuindo para a vitalização do próprio lava-jatismo. Aras deveria responder por sua omissão. Mas há no governo quem queira recompensá-lo.

Está aí a engenhosidade de Augusto: pratica um anti-lava-jatismo retórico tão lava-jatista quanto o lava-jatismo que diz combater. Na essência, a patologia jurídica é a mesma. Só afeta gente diferente, por enquanto. Não está fácil de entender.

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