Entre as festividades da proclamação da República, evento histórico de intenções duvidosas, a homenagem aos modos mui republicanos da magistocracia já conquistou seu lugar. Em vez de separar o público do privado, convida-os para dançar.
Todo magistocrata persegue a vida boa. Vida boa não exatamente no sentido ético e republicano. Na busca dessa vida boa, construiu uma vantajosa parceria público-privada. Parentes, palestras e penduricalhos sintetizam o PPP da magistocracia. Desenhou todo um repertório de fugas disfarçadas da lei, uma tecnologia da ilegalidade para executar seu PPP.
Comecemos pelos parentes. Um magistocrata raiz vive pela "família acima de tudo". Há muitas formas de enriquecer a dinastia. Enquanto o STF se orgulha de sua súmula vinculante contra o nepotismo, faz vista grossa para outras formas de parentismo.
O STF decidiu nesse ano, por exemplo, que uma regra impedindo ministros de julgar caso de empresa cliente de parente próximo é inconstitucional. Sob o pretexto de que a regra era rigorosa demais e de difícil operacionalização, em vez de dar a ela uma interpretação adaptativa, que pelo menos protegesse o essencial e fácil de aplicar, resolveu revogar.
Assim, ninguém fica impedido: se o ministro é pai, contrate o filho; se é marido, contrate a mulher; se é irmão, contrate a irmã. A porta do tribunal será mais família, ainda que custe honorários extras (a taxa do parente). Não há conflito de interesses, nem corrupção. Há apenas prerrogativas de um tipo especial de advogado, as prerrogativas dos laços de família.
Todo magistocrata quer futuro brilhante para os filhos. Por isso não hesita em ajudar a colocar o filho na carreira. Aos filhos estudiosos que passam em concurso, ajudam na promoção. Aos filhos não concurseiros, oferecem a entrada direta em tribunal de segunda instância. Até ministro do STF já fez lobby pela filha. Só não inaugurou a prática.
Há também os convites para "dar palestras" e "assistir palestras". Em regra, em lugares glamorosos, onde se bebe o melhor vinho e se apreciam paisagens contemplativas. Sob "patrocínio" dos agentes econômicos mais poderosos do país, com grandes interesses em casos de tribunais em todos os níveis. Acontece em Lisboa, todo ano. Ou numa ilha do Mediterrâneo.
Da remuneração direta pelo serviço não sabemos (pois o CNJ derrotou proposta de resolução que suavizasse a indecência e criasse alguma transparência). A remuneração indireta (traduzida em diárias de hotéis, em transporte aéreo e outros mimos, para si e para a família) sabemos que há.
Não há conflito de interesses, nem corrupção. Há apenas prerrogativas de juízes para participar das "palestras", nome-fantasia para prática que a Constituição proíbe.
Até aqui, tudo muito errado, mas muito errado só com dinheiro privado. Restam os penduricalhos para magistocratas menos influentes, que não abrem portas aos parentes nem recebem convites para as "palestras".
"Penduricalho" é nome-fantasia para pagamentos que multiplicam a renda. Alguns, legítimos e legais. Outros, nem um pouco. Nessa baixa política para aumento de salário que desrespeita o teto, vender férias, criar adicionais extravagantes (como auxílio-paletó) e classificá-los como meramente "indenizatórios", não remuneratórios, são caminhos. Pode-se também dar a juízes em funções administrativas uma "licença compensatória na proporção de três dias de trabalho para um de licença", como autorizou o CNJ.
Luís Roberto Barroso, quando fez sugestões para a melhora da economia do país, incluiu em sua lista o combate ao "preconceito contra o empresário". Pois está na hora de também enfrentarmos o preconceito contra o magistocrata. Porque desrespeito à lei não atesta qualidade de caráter. O magistocrata de bem tem virtude. Uma licença para deixar a legalidade embaixo do tapete.
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