Ezra Klein

Colunista do New York Times, fundou o site Vox, do qual foi diretor de Redação e repórter especial

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Os democratas merecem ser reeleitos nos EUA?

Governo Biden conseguiu vitórias no Congresso, mas não soube ser ambicioso nem marginalizar figura de Trump

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Costuma-se dizer que a visão retrospectiva é o momento da decisão. No que se refere à política, nunca acreditei nisso. Muitas análises se baseiam no que passei a considerar a falácia contrafactual. É assim: o partido no poder fez X em vez de Y. X não funcionou tão bem quanto os democratas ou os republicanos esperavam. Eles deveriam ter feito Y.

Só podemos rodar a fita uma vez. Nunca podemos saber se decisões diferentes nos levariam a um mundo melhor ou trariam resultados piores. Mas as eleições obrigam a avaliar como foi o desempenho do partido no poder, apesar de não podermos conhecer outros caminhos.

E assim, com o dia da eleição se aproximando e a votação já em curso em todos os Estados Unidos, tenho tentado elaborar minha própria resposta à pergunta: quão bem os democratas se saíram com o poder que tinham, dadas as restrições que enfrentaram?

O presidente dos EUA, Joe Biden, durante ato de campanha da candidata democrata para o Senado Val Demings, na Flórida, em Miami
O presidente dos EUA, Joe Biden, durante ato de campanha da candidata democrata para o Senado Val Demings, na Flórida, em Miami - Marco Bello - 1º.nov.22/Reuters

Acho útil relembrar as três promessas interligadas com as quais os democratas concorreram. Em primeiro lugar, eles prometeram fazer uma governança competente e preocupada com a Covid. Em segundo, tinham uma agenda legislativa do tamanho da de Franklin Roosevelt, acreditando que este era um momento de ruptura como o da Grande Depressão, que exigia uma nova visão do que o Estado podia e devia fazer. E concorreram prometendo restaurar a alma da América, restabelecer uma promessa cívica e decência comunitária que Donald Trump e o Partido Republicano nunca entenderam e traíram constantemente.

O histórico da Covid é mais misto do que eu gostaria. A julgar pelo que foi prometido em 2020, o governo Biden fez avanços notáveis. Cerca de 80% dos americanos tomaram pelo menos uma vacina, e qualquer pessoa, em qualquer lugar do país, pode receber injeções e reforços com pouca dificuldade e sem custo. Os testes rápidos foram sendo lançados lentamente, mas estão aqui agora, e durante algum tempo o governo os enviaria, gratuitamente, à sua porta. O governo dos EUA comprou mais Paxlovid do que qualquer outro país, e agora ele está amplamente disponível. As máscaras são baratas e abundantes.

Mas, a julgar pelo que era possível até 2022, quatro dos ex-assessores do presidente Joe Biden para a Covid escreveram no Times que "estão profundamente consternados com o que foi deixado de fazer". A mudança da resposta de emergência para uma nova arquitetura de prontidão não aconteceu. O teste doméstico nunca foi integrado a nenhum tipo de política coletiva ou a um sistema de registro de dados. A verba para o governo fornecer testes diretamente expirou, com poucos protestos da Casa Branca.

O monitoramento de águas residuais "continua descoordenado e insuficientemente padronizado para um sistema de vigilância nacional robusto", escreveram os ex-assessores de Biden. Muito mais poderia ter sido feito para melhorar a qualidade do ar no interior de edifícios e deixar claro quais deles preenchem os critérios mais elevados.

Depois que critiquei o governo Biden por não aproveitar os êxitos do programa Operação Warp Speed, ouvi de seu coordenador para Covid, Ashish Jha, que a Casa Branca estava pressionando o Congresso por US$ 8 bilhões para criar um programa semelhante ao Warp Speed de vacinas da próxima geração, chamado Covid Shield. Mas esse movimento foi silencioso, e o governo se comprometeu com um caminho bipartidário que nunca se abriu.

Quando o Congresso não forneceu o dinheiro, o governo não foi a público, muito menos recorreu a medidas duras. Biden poderia ter se recusado a assinar contas de gastos que não incluíssem o dinheiro de preparação para a Covid que ele desejava. Os democratas deveriam ter feito disso uma disposição obrigatória da Lei de Redução da Inflação; como os últimos anos provaram, há poucas coisas piores para a inflação do que uma pandemia enfurecida.

A Casa Branca entende tudo isso. Jha está por aí, mesmo agora, dando o alarme de que os tratamentos atuais estão perdendo eficácia e as variantes futuras poderão evitá-los mais facilmente. "A falta de financiamento do Congresso dificultou para nós reabastecer nosso armário de remédios", disse ele na quarta-feira (26).

"Por causa da falta de financiamento do Congresso, o estoque de remédios realmente encolheu, e isso coloca pessoas vulneráveis em risco." Os republicanos merecem desprezo por se recusarem a financiar a prontidão para a pandemia. Mas os democratas merecem acusação por deixá-la se tornar uma prioridade entre muitas.

Para ser justo, houve muito mais na agenda dos democratas. A tensão central da estratégia legislativa de Biden é que ela combinou ambições de uma escala surpreendente com maiorias no Congresso que mal existiam. O Senado, num sentido técnico, não tinha maioria: é uma divisão 50-50, e os democratas só têm votos porque a vice-presidente Kamala Harris tem autoridade constitucional para romper os empates. É notável o quanto os democratas fizeram, mesmo assim.

Havia dois lados na agenda de longo prazo de Biden: construção e cuidado. O lado da construção –descarbonizar o país, construir e reparar infraestruturas e investir na produção de semicondutores e pesquisa científica– foi amplamente aprovado. E grande parte disso é emocionante.

Trump foi muito ridicularizado por semanas de infraestrutura que quase nunca resultaram em novas infraestruturas. Biden e os democratas estabeleceram as condições para uma década de infraestrutura que pode transformar o que os Estados Unidos fazem e como é feito. E, para minha surpresa, Biden colocou a invenção no centro de sua formulação de políticas e, embora ainda não possamos saber que frutos isso trará, talvez seja seu legado mais duradouro.

Mas o lado dos cuidados da agenda de Biden –pré-escola universal, crédito fiscal expandido para crianças, subsídios para cuidados infantis e de idosos, licença remunerada– entrou em colapso quase inteiramente (a única exceção foi um aumento nos subsídios do Obamacare). Isso era inevitável?

Esse é um território obscuro, dados os relatos contraditórios que Biden e o senador Joe Manchin deram de suas negociações. Havia realmente um pacote de US$ 1,8 trilhão para o Build Back Better pelo qual Manchin teria votado? A equipe de Biden achou que tinha um acordo. Manchin diz que nunca tiveram. E no final das contas ninguém forçou Manchin a decidir que não valia a pena cuidar das crianças e que não valia a pena reduzir a pobreza infantil. Que membros do Senado se importem muito com pontes e tão pouco com corpos é um escândalo.

Ainda assim, se você me dissesse em 2020 que o próximo presidente democrata teria um Senado de 50-50, com Manchin como voto decisivo e uma margem na Câmara de apenas alguns membros, eu não teria previsto que os democratas poderiam aprovar mais de US$ 400 bilhões em investimentos climáticos, ou aumentos significativos de impostos corporativos, ou a mais importante infusão de dinheiro e capital em pesquisa científica em uma geração.

Três críticas merecem ser publicadas. Uma é que os democratas poderiam ter aprovado mais da agenda de assistência recusando-se a permitir uma votação separada do projeto de infraestrutura. O governo Biden acredita agora, e acreditava então, que não tinha votos suficientes para juntar os dois. Essa estratégia corria um risco inaceitável de nada ser aprovado. Como Manchin se mostrou totalmente disposto a matar grandes partes da agenda de Biden e deixar o governo girando ao vento mês após mês, suspeito que eles estejam certos. Mas não há como saber realmente.

Outra é que o Plano de Resgate Americano era grande demais e, por melhores que fossem as intenções por trás dele, era um servo da inflação. Acho que nisso o governo Biden errou no lado certo do livro-caixa. O desemprego é de 3,5%. Os trabalhadores receberam aumentos e cheques de estímulo. A pobreza caiu drasticamente. Os desempregados não foram forçados à indigência. Tudo isso é fácil de desprezar agora, mas nada estava garantido. E, com a inflação em 10% na Alemanha e na Grã-Bretanha e 7% no Canadá, desconfio das explicações que dão demasiada importância à legislação aprovada em um país.

Acho que uma tese mais forte é que o Fed deveria ter aumentado as taxas de juros mais cedo e que Biden e os democratas deveriam ter dado menos ajuda econômica diante de uma pandemia que congelou a economia global. Talvez o plano de resgate devesse ter sido armado com mais estabilizadores automáticos para que a ajuda aumentasse à medida que o desemprego subisse e desaparecesse mais rapidamente caso baixasse. Mas isso vale para todas as crises econômicas e, por razões que não entendo completamente, o Congresso se recusa a aprender essa lição.

Isso deixa uma crítica que eu acho mais justa: o governo Biden e os congressistas democratas tiveram uma abordagem de "quanto mais, melhor" para cada peça de legislação que eles promoveram. Uma razão pela qual o crédito fiscal expandido para crianças expirou rapidamente foi que o plano de resgate estava repleto de políticas que precisavam de verbas. Uma razão pela qual era difícil defender o Build Back Better era que havia tanto conteúdo no pacote que a principal coisa que alguém sabia sobre ele era seu preço, US$ 3,5 trilhões.

A pressão por um pacote de reformas democráticas foi igualmente desfocada. Incluía praticamente tudo o que qualquer um que estivesse preocupado com direitos de voto ou financiamento de campanha poderia pensar, no entanto ainda teria feito pouco para bloquear o tipo de subversão eleitoral que Trump e seus apoiadores tentaram em 2020 e parecem estar reunindo forças para tentar novamente em 2024.

Biden sempre enquadrou 2020 como uma luta pela alma da América, não apenas pelo volante. Isso é mais difícil de avaliar. Nunca acreditei que ele pensasse que poderia unir uma nação dividida. Ele é um otimista, mas não um fantasista. Em um nível mais literal, ele fez o que prometeu –dirigiu uma Casa Branca de baixa dramaticidade e baixo escândalo e se comportou com dignidade e graça.

Mas Biden também fez uma administração relativamente silenciosa. Ele dá comparativamente poucas entrevistas, conferências de imprensa e discursos. Ele preencheu o cargo que Trump deixou, mas não o espaço que Trump ocupou no debate nacional.

Argumentei que a abordagem descontraída de Biden é, de certa forma, uma estratégia: ao deixar Trump e seus sucessores ocuparem as ondas aéreas, Biden e os democratas lembram a seus eleitores o que está em jogo. Mas essa estratégia encerra riscos profundos. A abordagem de baixa dramaticidade de Biden na liderança deixa espaço para os truques de alta dramaticidade de Trump.

O que pode ser dito, eu acho, é o seguinte: Biden e os democratas realizaram muita coisa, apesar de maiorias muito apertadas. Eles lançaram vacinas e tratamentos em todo o país, mas ainda estamos longe de terminar o trabalho de prontidão pandêmica. Eles conduziram o governo de maneira digna e decente, mas ainda estamos longe de virar a página de Trump.

Na próxima semana, examinarei mais de perto o que os republicanos estão prometendo fazer se lhes derem o poder de fazê-lo. Porque estas eleições são mais que um mero referendo. Eles são uma escolha.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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