Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Descrição de chapéu

A ciranda pós-moderna do Amazonas

Festival na cidade Manacapuru mistura tradições dançantes brasileiras

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Semana passada fui jurado no Festival de Ciranda de Manacapuru, no Amazonas. Surpreendente e promissor ao mesmo tempo, o festival na zona metropolitana de Manaus reforça a aptidão de um estado para festejos ao mesmo tempo folclóricos, espetaculares e massivos.

Conhecida como "a princesinha do Solimões", Manacapuru está a mais de 90 quilômetros da capital. Para se chegar lá desde Manaus é preciso cruzar a bonita ponte sobre o Rio Negro, inaugurada em 2011, e entrar floresta adentro. Em outras regiões do Brasil seria considerada uma cidade interiorana. No Amazonas é considerada parte da região metropolitana de Manaus.

Apresentação do Guerreiros Mura no festival de Cirandas de Manacapuru
Apresentação do Guerreiros Mura no festival de Cirandas de Manacapuru - David Martins/Secretaria de Cultura e Economia Criativa

O Festival de Cirandas de Manacapuru acontece sempre no último fim de semana de agosto. De sexta a domingo, apresentam-se por duas horas e meia por dia uma das três cirandas da cidade, a Tradicional, a Flor Matizada e a Guerreiros Mura. O Festival de Manacapuru é considerado a segunda maior festa popular folclórica do Estado do Amazonas, depois do boi de Parintins.

A ciranda amazonense é herdeira da tradicional ciranda pernambucana, que migrou para a região do município de Tefé em épocas pretéritas. Na década de 1980 a ciranda chegou à Manacapuru. Inicialmente era uma brincadeira de escolas públicas da cidade. O primeiro festival competitivo aconteceu em 1997. Diante do sucesso da competição, no ano seguinte o festival passou a ser realizado no então recém-construído Parque do Ingá.

Apesar de se definir como "folclórico", não se deve esperar do festival de Manacapuru manifestações de pureza e autenticidades fiéis às tradições da ciranda pernambucana. Assim como o magnífico festival de Parintins, o festival de Manacapuru é um festejo cosmopolita, polissêmico e sobretudo pós-moderno.

Formatado como espetáculo competitivo nos anos 90, trata-se de um festival fruto de sua época, a era da globalização e do encontro de tradições através da internet. Há hoje em Manacapuru pouco da tradicional ciranda pernambucana e muito mais a mistura dessa tradição com toadas de boi parintinense, com axé, frevo, guarânia, quadrilha, calypso, ritmos caribenhos diversos e vários outros gêneros dançantes da cultura popular massiva brasileira.

É preciso ter a "alma livre", como me disse um integrante do festival, para apreciar a ciranda de Manacapuru. Talvez por isso as três cirandas evitam que antropólogos estejam entre os jurados da festa. Não é incomum que antropólogos cobrem fidelidade às tradições locais, numa dissonância cognitiva que destoa da identidade global e cosmopolita que desejam muitos dos povos da floresta.

Relativamente pouco conhecido até uns quinze anos atrás, mesmo entre os amazônidas, o Festival de Ciranda de Manacapuru tem grandes chances de se tornar ainda maior. Diferentemente do festival de Parintins, que encontra seus limites na distância da cidade sede e sua reduzida capacidade hoteleira, Manacapuru está perto da capital. É possível ir e voltar na mesma noite, através da ótima e duplicada AM-070. Os quinze mil lugares do "cirandandrómo" ainda não lotam completamente e os preços para quem quer ficar na cidade são mais viáveis do que os de Parintins, o que permite que turistas vivam a experiência de forma mais imersiva, mas sem sofrer tanto no bolso.

A disputa pelo primeiro lugar desse ano foi apertada, como sempre. Saiu vitoriosa a Ciranda Guerreiros Mura, depois que os concorrentes foram punidos por desrespeitar normas do regulamento e perderem um ponto cada.

Como jurado, o que vi foi uma festa que canta lindamente a vida Amazônica através da história e lendas indígenas. Mesmo que o foco sejam as narrativas místicas dos povos tradicionais, os dramas de destruição da floresta aparecem a todo instante em cena.

Nos cinco dias que estive lá a névoa branca das queimadas impediu que o céu azul brilhasse de dia. As três cirandas denunciaram a depredação da mata amazônica e usaram a festa para protestar contra o marco temporal de terras indígenas. Alguns dos brincantes se diziam até anticapitalistas. Curioso que a festa seja abençoada por governantes mais à direita do que gostariam os cirandeiros.

O festival de Ciranda de Manacapuru é uma festa bancada integralmente pelo Estado. Terá muito a crescer se conseguir o que Parintins obteve ao longo dos anos: a associação com a iniciativa privada, que catapultou o nível espetacular daquela festa. De alguns anos para cá, os bois de Parintins vêm influenciando as cirandas de Manacapuru, fazendo intercâmbio de cantores e cenógrafos. O desafio dos manacapuruenses é não perder a especificidade de sua festa.

O Festival de Manacapuru é uma ópera antropofágica da cultura brasileira, aberta a diversas influências. E, apesar do risco de se perder no hibridismo do caldeirão cultural da pós-modernidade, a cidade vem conseguindo construir uma identidade própria. O que vi em Manacapuru em seus melhores momentos não foi um "sub-boi" de Parintins, mas uma manifestação cultural própria sendo costurada pelo bailado dos cirandeiros do século 21.

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