Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Ler Montaigne nos ajuda a ser mais conscientes durante pandemia

Autor escreve que medo pode nos paralisar por completo ou nos motivar para ação

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Desde o fechamento da universidade em virtude da pandemia até agora, a última vez em que eu estive com uma amiga no centro da cidade foi no dia 12 de março. Conto, portanto, onze dias de isolamento, a dividir o meu tempo entre os cuidados com a minha sogra, a escrita da tese e as leituras de lazer. Optei por sair de casa apenas para caminhar e visitar o supermercado —mesmo assim, esporadicamente.

Há dias o bar da minha esquina já não atende ninguém, e, com isso, as pessoas que sempre me cumprimentavam no caminho de volta para casa foram, pouco a pouco, desaparecendo. A padaria do meu bairro que funcionou até sexta-feira passada, que todo final de semana patrocinava uma feirinha de orgânicos, também fechou as portas, e nem preciso dizer que a feirinha foi cancelada.

Quando tive de renovar uma receita médica na clínica universitária, onde recebo acompanhamento de saúde gratuito, o fiz por telefone. No dia seguinte, recebi o documento pelo correio. Para adquirir os novos medicamentos, tive de enfrentar uma fila do lado de fora da farmácia.

No supermercado, somente agora, depois do pânico inicial que levou as pessoas a estocarem de tudo um pouco, deixando para trás um rastro de prateleiras vazias, os idosos têm atendimento preferencial. Eles são os primeiros a entrar assim que a loja abre as portas. Em seguida, é a nossa vez. E, ao colocarmos os produtos no carrinho, tentamos não exagerar nas compras, conscientes de que, se faltar algo para um, faltará para todos.

Na mídia, as instruções para lavarmos as mãos com frequência e mantermos a etiqueta sanitária lembram-me das campanhas de higiene que testemunhei, ainda menina, quando do surto de cólera no Brasil da década de 1990. No entanto, por faltar-me experiência neste sentido, as recomendações de isolamento voluntário e distanciamento social remetem-me invariavelmente à literatura.

Não são poucos os artigos publicados em jornais e revistas sugerindo leituras para o período de quarentena. Muitos articulistas referem-se ao filósofo Albert Camus em "A Peste", romance do final da década de 1940 que se transformou em best-seller em meio à atual pandemia. De Camus, podemos destacar a seguinte denúncia:

“Os nossos concidadãos não eram mais culpados do que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos.”

Outros, recorreram a Giovanni Boccaccio, cujo "Decameron" descreve o colapso das relações sociais na cidade italiana de Florença, em 1348, durante a Peste Negra. Dentre esses autores de resenhas, quase todos citam uma mesma passagem do livro, não por falta de criatividade, mas por nos remeter às presentes circunstâncias:

“E, sem contar que um cidadão evitava o outro, que quase nenhum vizinho cuidava do outro e que os parentes raramente ou nunca se visitavam, e só o faziam à distância, era tamanho o pavor que essa tribulação pusera no coração de homens e mulheres, que um irmão abandonava o outro, o tio ao sobrinho, a irmã ao irmão e muitas vezes a mulher ao marido; mas (o que é pior e quase incrível) os pais e as mães evitavam visitar e servir os filhos, como se seus não fossem.”

Todos, sem exceção, celebram o gênio de Boccaccio ao nos prescrever uma dieta de narrativas e atividades aprazíveis para lidarmos com o medo e a ansiedade durante o confinamento. No entanto, permitam-me utilizar dos mesmos argumentos do referido autor para sugerir que nem todas as leituras do momento precisam estar diretamente relacionadas à vivência de uma epidemia.

Assim, nesse final de semana, enquanto o departamento de saúde transformava o estádio de futebol da minha vizinhança em uma central de testes para diagnosticar infecções pelo vírus, busquei tranquilizar-me na leitura dos ensaios de Michel de Montaigne.

Nascido em 1533 na França, Montaigne atuou como magistrado em um período de extrema violência entre católicos e protestantes. Em 1570, alguns anos após a morte do seu melhor amigo, o pensador Étienne de Boétie, Montaigne afastou-se da vida pública e começou a escrever sobre os seus próprios sentimentos e experiências, inspirando-nos, entre outras coisas, a uma honesta reflexão sobre os limites da razão e a importância de analisarmos uma mesma situação ou fenômeno sob as mais diversas perspectivas.

Ao longo dos séculos, a sua obra, embebida da sabedoria e da clareza de expressão de escritores latinos, como Sêneca e Plutarco, influenciou Shakespeare, Friedrich Nietzsche e mesmo Simone de Beauvoir, cuja reflexão sobre a importância da finitude para a experiência humana no romance "Todos os Homens São Mortais" —aliás, leitura apropriada para o momento— em muito deve à obra de Montaigne.

Sobre os ensaios de Montaigne, o filósofo norte-americano Ralph Waldo Emerson comenta: “A sinceridade e a essência desse homem exprimem-se em suas palavras. Não conheço em nenhum lugar um livro que pareça menos escrito. É a linguagem da conversação transferida para um livro. Corte essas palavras e elas sangrariam; elas são vasculares e vivas”.

Sugiro, portanto, a leitura de três ensaios de Montaigne que, nos últimos dias, muito me ajudaram a manter a cabeça funcionando, a despeito da ansiedade. Eles estão reunidos no livro "Os Ensaios: Uma Seleção", organizado por M. A. Screech (Penguin Companhia, R$ 44,90, 616 págs.).

Lidos em sequência, quem sabe, eles podem nos ensinar como lidar com a solidão, o medo e a morte, fardos humanos que, durante muito tempo, tentamos suprimir, mas que, agora, voltam a ser presentes no nosso cotidiano.

Em "Sobre a Solidão", Montaigne reflete sobre a arte de aprender a viver consigo mesmo. Ele nos confidencia que a verdadeira solidão não significa ausentar-se dos acontecimentos do mundo, mas cultivar certo grau distanciamento, em um exercício saudável de ceticismo e autopreservação.

“Os meios errados pelos quais avançamos em nosso século, bem mostram que seus objetivos não valem muito. [...] Se primeiramente não nos livramos, a nós e a nossa alma, do peso que a oprime, movê-la a esmagará ainda mais, [...]. Por isso não basta mudar de lugar. [...] É preciso sequestrar a si mesmo e reaver a si mesmo. [...] Temos uma alma capaz de recolher-se em si mesma; ela pode se fazer companhia, tem com o que atacar e com o que se defender, com o que receber e com o que dar; não temamos nessa solidão embotarmo-nos em uma penosa ociosidade.”

No ensaio "Sobre o Medo", Montaigne recorre à sua experiência de guerra para dizer que esse pode tanto nos paralisar por completo quanto nos motivar para a ação. Desse ensaio, retiro outras passagens que podem nos ajudar muito a refletir sobre o momento.

“Não sou nenhum especialista da natureza (como se diz) e não sei por quais mecanismos o medo age em nós [...]. Dizem os médicos que não há nenhuma emoção que deixe mais depressa o nosso julgamento fora do seu estado normal. [...] O medo exprime a sua última força quando, para o seu próprio serviço, nos devolve a valentia que subtraiu do nosso dever e a da nossa honra.”

Montaigne também nos convida a refletir sobre a morte, de forma a evitarmos o pânico e cultivarmos o bem viver dentro das nossas atuais possibilidades. Essa, quem sabe, é a principal lição do filósofo para enfrentarmos os próximos dias.

“A morte é o fim da nossa caminhada, é o objetivo necessário da nossa mira; se nos apavora, como é possível dar um passo a frente sem ser tomado pela ansiedade? [...] É incerto onde a morte nos espera, aguardemo-la em toda parte. Meditar previamente sobre a morte é meditar previamente sobre a liberdade. [...] Fosse eu um fazedor de livros e faria um registro comentando as mortes diversas. Quem ensinasse os homens a morrer os ensinaria a viver”, escreve em "Que Filosofar É Aprender a Morrer".

O cientista político norte-americano Mark Lilla assevera que uma das maiores contribuições de Montaigne à nossa cultura é a ideia de que o homem deve procurar conhecer a si mesmo para reeducar-se e, assim, tornar-se a si próprio.

Isso posto, neste momento de crise mundial em que tantos se questionam em que precisamos mudar para preservarmos a humanidade, quem sabe a leitura de Montaigne não nos ajude a nos tornarmos mais conscientes.

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