Lúcia Guimarães

É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

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Biden precisava de uma companheira de chapa disposta a brigar pela Casa Branca em 2024

Kamala Harris faz história como primeira candidata negra a vice-presidente

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A seleção para a chapa democrata de Kamala Harris, a primeira candidata negra a vice-presidente, despertou a furiosa e esperada reação da direita trumpista, a começar pelo próprio Donald Trump, que mentiu sobre o currículo da senadora na entrevista coletiva da tarde de terça-feira (11) e repetiu o mesmo adjetivo que sapecava em Hillary Clinton: “nasty”.

É uma palavra carregada de misoginia que adquire conotação racial porque significa, além de “horrível”, pessoa “sórdida” ou “repelente”.

O candidato à Presidência dos Estados Unidos, Joe Biden, cumprimenta Kamala Harris, sua então adversária na corrida pela nomeação do Partido Democrata, e agora sua candidata a vice-presidente na corrida eleitoral americana - Robyn Beck - 12.set.2020/AFP

Nas horas seguintes ao anúncio da escolha de Joe Biden, a programação da Fox News se transformou num contínuo comercial de campanha para Trump, representando Kamala como radical de esquerda e oportunista e ridicularizando a pronúncia de seu nome, que significa lótus em sânscrito.

Mas a propaganda identitária como arma contra a senadora pode ser um desafio neste ano incomum de pandemia e depressão econômica.

Kamala Harris, 55, é filha de uma indiana e um jamaicano. Teve infância e adolescência cercada de brancos, mas sempre alerta para o racismo.

Uma vizinha branca não deixava as filhas brincarem com Kamala e Maya, sua irmã. Sua mãe tinha doutorado em Berkeley e era pesquisadora de câncer. Mas, em lojas, alguns perguntavam se era empregada doméstica.

A experiência de outsider multirracial fez Kamala insistir em atravessar o país para estudar na Howard University, em Washington, apelidada de Harvard Negra, a principal entre as escolas superiores de maioria afro-americana, por onde passaram a romancista Toni Morrison e o primeiro juiz negro da Suprema Corte, Thurgood Marshall.

Howard consolidou a identidade da segunda negra a ocupar uma vaga no Senado americano. Filha de uma hinduísta, hoje casada com um advogado judeu branco, a senadora se identifica como membro da Igreja Batista negra.

Mas a vida política de Kamala foi marcada por intimidade com a elite de San Francisco, inclusive os milionários de famílias tradicionais que precederam a emergência dos bilionários do Vale do Silício.

Ela é amiga pessoal de Laurene Powell Jobs, a viúva de Steve Jobs, o fundador da Apple. É uma favorita dos bilionários doadores do Vale.

Eles devem o abrir os cofres para a campanha e amortecer qualquer impulso que temiam de uma candidata como Elizabeth Warren, descrita como uma ameaça existencial por Mark Zuckerberg, fundador do Facebook.

Os titãs da indústria tech temem agendas democratas como repatriação de lucros e aumento de impostos. Biden, ao longo da campanha, não se mostrou avesso aos monopólios do Vale, mas, com a interferência da Rússia na rede social que pesou em 2016 e continua em 2020, ele vai sofrer pressão no Congresso para reinar sobre o vale tudo de plataformas como o Facebook.

A escolha de Kamala Harris foi a mais consequente da longa carreira de Joe Biden. Aos 77 anos —ele completa 78 em novembro—, o candidato precisava de uma companheira de chapa pronta para assumir a Presidência e disposta a brigar pela Casa Branca em 2024, já que a reeleição de um presidente de 82 anos é uma proposta indigesta para eleitores jovens.

Duas considerações demográficas pesaram na escolha. Atrair mulheres dos subúrbios que ajudaram a eleger Trump e se afastaram dele. E mobilizar jovens.

Kamala não atraiu apoio negro como pré-candidata, em 2019. O eleitorado negro americano, que garantiu a candidatura quase moribunda de Biden com a vitória na primária da Carolina do Sul, vota de maneira defensiva. Não importa a cor da pele, apoia o candidato com chance de proteger seus interesses.

E seu destemor no palanque vai ser útil para enfrentar inevitáveis ataques da esquerda do Partido Democrata. Afinal, ela é uma ex-promotora, num ano sacudido pela violência policial contra negros.

Mas um possível calcanhar de Aquiles explorável tanto pela esquerda como pela direita seria o período em que Kamala foi procuradora distrital de San Francisco, entre 2004 e 2011.

Kamala havia herdado um extenso dossiê sobre décadas de acusações de abuso sexual na influente diocese da Igreja Católica de San Francisco. Ao assumir, vetou acesso ao arquivo às vítimas de abuso nas mãos dos religiosos para que pudessem seguir com a opção de ações na Justiça civil, não criminal.

Ela foi acusada de cooperar com o então cardeal William Levada, morto no ano passado, para manter as informações confidenciais. Quando se elegeu procuradora estadual da Califórnia, em 2010, Kamala se apresentou como defensora de vítimas de abuso sexual.

Ela foi uma candidata desorganizada que não apresentava agenda clara.

Mas traz qualidades valiosas para a campanha no papel de vice. É uma debatedora impiedosa, e a perspectiva de assistir ao confronto com o vice Mike Pence, em 7 de outubro, está levando democratas a estocar pipoca.

Como número 2, a senadora conhecida por gargalhadas altas e adepta de dançar em público enriquece a campanha com algo que elegeu Obama: uma narrativa pessoal rica para inspirar o exausto eleitor americano.

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