Luís Francisco Carvalho Filho

Advogado criminal, é autor de "Newton" e "Nada mais foi dito nem perguntado"

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Luís Francisco Carvalho Filho
Descrição de chapéu Folhajus

Merda em boca

Reflexões sobre governo, ira e vulgaridade

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Editado em 1832, em Ouro Preto, o Diccionario da Lingua Brasileira, de Luiz Maria da Silva Pinto, define merda como excremento humano e faz, entre parênteses, anotação aparentemente ingênua: “Não é termo político”.

Segunda-feira (21), em Guaratinguetá, interior de São Paulo, o presidente da República enfurecido, fora de si, praguejava para todo mundo ouvir: “Essa Globo é uma merda de imprensa”.

A merda está no imaginário público e privado, adquirindo significados diversos. Canela-merda é nome popular, caipira, da Nectandra megapotamica. Tem antúrio-merda (Typhonium roxburghii) na natureza e Museo della Merda em barracões industriais e artísticos na Lombardia, Itália.

D. Dinis (1261-1325), sexto rei de Portugal, teria imposto pena de morte para “homem ou mulher que a outrem mete merda em boca ou manda meter” —agressão física injuriosa, espetacular e medieval, que o monarca letrado quis eliminar.

Que merda é essa? Ilustríssima
Gabriel Cabral - 21.mai.19/Folhapress

Merda é a exclamação solidária e supersticiosa da gente do teatro, antes de entrar em cena, sobretudo nas estreias: desejar merda em vez de boa sorte, expressão que não se pronuncia em bastidores e coxias, por medo do azar. Caetano Veloso compôs “Merda” (1986) para saudar o ritual (“Merda pra você também”, “Merda toda noite, sempre, amém”), canção que, por causa da estupidez da censura, já na Nova República, foi proibida na TV Globo.

Os poetas gostam da palavra. Gregório de Mattos: “Se não merda com mais merda”. João Cabral de Melo Neto, “a merda, o lixo, o corpo podre, os humores”. Ferreira Gullar, “Explodo o meu sonho em merda”. Paulo Leminski, “Não há merda que se compare à bosta da pessoa amada”.

“Vão à merda” é o despacho do presidente João Figueiredo (1979-1985) no telegrama de protesto que recebeu do reitor da Unicamp, pela expulsão de um professor. Livro de memórias de Saulo Ramos fala de ministro do Supremo como “juiz de merda”. Romário retruca sugestão de Pelé, de sua aposentadoria, dizendo: “A gente já sabe que ele só fala merda”.

Previsão bem-humorada da trajetória do PT, por intuir a inexperiência administrativa do partido em 2003, Chico Buarque sugere a criação do Ministério do Vai Dar Merda. Em 2019, Milton Nascimento reclama que “a música brasileira está uma merda”.

O desabafo da presidente Dilma Rousseff (2011-2016) faz parte dos bastidores de encontro restrito no Palácio da Alvorada na crise da Lava Jato, “Eu não vou pagar pela merda dos outros”. Condenado pela sentença (nula) de Sergio Moro, Lula discursa em Feira de Santana, na Bahia: “Este país tem jeito. Não nasceu para ser a merda que é”.

A boca suja de Bolsonaro é também a boca suja de Paulo Guedes, que se refere ao imposto sobre transações (que ele quer instituir) como “imposto de merda”.

Na reunião ministerial de 2020, que cobrirá para sempre o Brasil de vergonha, o chefe de Estado pronuncia 33 palavrões, cinco vezes merda, entre impropérios e ameaças à democracia.

É importante perceber a diferença. O manejo da merda, ainda que em xingamento, vulgaridade ou escatologia, não costuma ter o cheiro podre de destruição que a boca de Jair Bolsonaro exala. É o mesmo governo que acelera o morticínio na pandemia.

Bolsonaro não convive com imprensa livre e diversidade de ideias e comportamentos. O ímpeto dos facínoras é abater o que incomoda.

Merda de presidente, presidente de merda, é o que se pensa diante da incontinência verbal contra a “merda de imprensa”.

lfcarvalhofilho@uol.com.br

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