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Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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Governo Bolsonaro pensa com a bunda, diz Ítala Nandi

Aos 79 anos, atriz relembra o período em que integrou o Teatro Oficina sob a ditadura militar, afirma que as mulheres hoje têm "pouco amor, muita trepação", compara o presidente a Hitler e Mussolini e diz que ainda tem muito por fazer na vida

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A atriz Ítala Nandi em 2019 Ana Branco - 2.jul.2019/Agência O Globo

A autocensura nunca foi a marca de Ítala Nandi, titular do primeiro nu frontal do teatro no país. Em 1967, sob a tutela do regime militar, a atriz falou à revista “Realidade” sobre sexualidade e desquite e declarou, em tom crítico, que “a única liberdade de que goza a mulher brasileira é a de escutar o homem, curvando a cabeça”. A edição acabou apreendida por ofender a moral e os bons costumes.


Cinco décadas depois, o desprendimento ao abordar os temas de seu tempo se mantém, e Ítala fala com pouca reserva sobre o governo Jair Bolsonaro. “Ele é um ‘Bolsonero’, ‘Bolsolini’. Todos eles [Nero, Mussolini] se foderam. Será que ele acha que tudo bem? Que ignorância, que falta de perspectiva. Aquela coisa do revólver... Porra, enfia esse revólver no cu. Que saco! Vão dar o cu, é o que eles estão precisando. Caramba, por que esse tipo de atitude com um país que poderia ser a mudança do mundo?”, diz à coluna.

“Eu acredito que o que vai, volta. Isso não tem erro. A maldade que eles estão fazendo com o povo brasileiro vai voltar para eles. É inevitável. Eles não têm cabeça, eles pensam com a bunda, e isso vai voltar.”

Aos 79 anos de idade, a atriz já se prepara para celebrar sua chegada aos 80, que serão completados no próximo ano. Neste domingo (27), ela exibe na plataforma #EmCasaComSesc o solo performático “Paixão Viva”, em que revisita suas mais de seis décadas de carreira. “Pode ser que quando vá ao ar, todo mundo ache uma droga, mas eu estou achando o máximo.”

Retrato da atriz Ítala Nandi - Felipe O'Neill/Divulgação

Filha de um vitivinicultor italiano que chegou ao país por intermédio do regime fascista de Benito Mussolini, Ítala Nandi cresceu em Caxias do Sul (RS), onde foi introduzida às artes cênicas. Em 1960, foi assistida pelo então crítico de teatro Fernando Peixoto, ao fazer um papel na peça “A Cantora Careca”. Casaram-se em cinco meses e, pouco depois, trocaram o Rio Grande do Sul pela capital paulista.

Em 1963, Fernando e Ítala começaram a trabalhar com o fundador e diretor do Teatro Oficina, José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso —ele como ator e ela, contadora.

Nos nove anos em que atuou na companhia, Ítala trabalhou como produtora, comandou o Oficina quando Zé Celso, Fernando Peixoto e Renato Borghi se refugiaram dos militares, em 1964, e encenou peças como “Pequenos Burgueses”, “O Rei da Vela”, “Galileu Galilei” e “Na Selva das Cidades”, sendo esta última a que registraria o primeiro nu frontal do teatro brasileiro.

“Foi o doutor Coelho, que era conhecidíssimo como censor da paróquia, e mais quatro [militares] para assistir o espetáculo de seis horas”, diz sobre a apresentação de “Na Selva das Cidades” que passou pelo crivo da censura do regime. “Os espetáculos do Zé Celso até hoje não são pequenos, mas este, particularmente, demorava seis horas. Quando terminou, eles levantaram e disseram ‘tchau’.”

Cena da peça "Na Selva das Cidades", montada pelo Teatro Oficina, em São Paulo - Divulgação

“Perguntamos da nudez, aí ele [Coelho] virou e falou: ‘É muito angelical, está tudo bem’”, segue. “O Arnaldo Jabor assistiu a esse espetáculo que os censores viram. Quando eles foram embora, o Jabor falou assim: ‘É, Zé, tem que cortar essa peça porque ela está muito grande’ —dois dias depois, para estrear, a gente cortou duas horas— e falou: ‘Mas eu sei por que eles não censuraram nada. Eles dormiram a peça inteira”, relembra Ítala, aos risos.

Com o Oficina, ela viajou a Paris para apresentar “O Rei da Vela” e testemunhou de perto a histórica revolta estudantil de maio de 1968. “Os críticos de teatro da França patrocinaram a nossa apresentação porque eles achavam que era de extremo interesse que os parisienses assistissem a essa inovação no palco”, conta.

“A gente viu, da janela do hotel, o [cineasta] Jean-Luc Godard na quadra, filmando. De um lado estavam os flics, que é como os franceses chamam a polícia deles, e do outro estava o Godard subindo com a câmera e com sua equipe. A gente começou a gritar: ‘Monsieur Godard, monsieur Godard’, a fazer um escândalo para ver se alguém ajudava. Eles levaram o Godard preso. Nisso, um desses flics pegou uma bomba e jogou na nossa direção.” Ítala afirma que Zé Celso foi atingido de raspão e não pôde participar da estreia parisiense de “O Rei da Vela”.

O Teatro Oficina, em São Paulo, em sua montagem original da peça "O Rei da Vela" - Reprodução

“A jovialidade do Oficina captava muito o interesse dos jovens, como é até hoje. É impressionante isso. Tem uma inovação que, sem dúvida, veio do Zé Celso. O Zé Celso é um Dionísio do teatro brasileiro, não tem ninguém nem nada parecido com o estilo dele.”

Outra apresentação que ficou marcada na memória da atriz septuagenária teve como palco o Rio de Janeiro e, na plateia, a presença do general Arthur da Costa e Silva, que presidiu o país de 1967 a 1969 e endureceu a repressão com o decreto do AI-5.

“Ele foi sozinho, comprou o ingresso e entrou. Sozinho! E depois foi nos cumprimentar no bastidor, cumprimentou cada um de nós”, diz sobre Costa e Silva. “Ele demonstrou um nível cultural que, convenhamos, apesar das torturas e de todas as merdas que eles fizeram —e fizeram—, demonstra uma atitude elevada. Que eu saiba, nenhum deles foi ver uma peça ou filme até agora.”

Questionada se está falando sobre o governo Bolsonaro, Ítala confirma. E torna a criticá-lo. “Olha o que está acontecendo conosco. A gente está sem patrocinadores. Eu tenho conta aberta no Banco do Brasil para produzir minha próxima peça. Lei Rouanet em vigor em 2021. Me pergunta se algum patrocinador, que eu sempre tive... Correios, Petrobras, empresas, sempre tive. Agora, nada.”

“Está todo mundo com o cu na mão”, sugere sobre o sumiço de patrocinadores para seus projetos. “Medo, medo, medo. O ‘Bolsonero’ tem a milícia. A milícia é a SS [Schutzstaffel, organização paramilitar nazista] dele. O Hitler também criou a sua milícia, era a SS. Tinha o exército e tinha a SS.”

“Engraçado, no início eu achei que o [vice-presidente Hamilton] Mourão... Ele é gaúcho e tudo, eu achei que o Mourão ia ser um sujeito interessante nesse governo. Mas ele está parado, está fechado. Tem uma força ali, ela é muito poderosa. Lá dentro, a gente percebe que está todo mundo muito assustado, muito apavorado. Isso dá pra ver. E também eu, com 80 anos, se tiver que me acontecer alguma coisa, eu já fiz o que tinha que fazer, está de bom tamanho.”

Ítala hesita e silencia por alguns segundos para, em seguida, ponderar: “Só que eu penso que ainda tenho muita coisa pra fazer”, diz. E cai na gargalhada.

Retrato da atriz Ítala Nandi - Felipe O'Neill/Divulgação

Algumas dessas “coisas” são as aulas na sua escola de atores no Rio de Janeiro, a Espaço Nandi, que serão retomadas presencialmente após a epidemia da Covid-19, e as gravações do filme “Clube das Mulheres de Negócio”, da cineasta Anna Muylaert.

“Esse roteiro dela é maravilhoso, muito bem bolado, é só a mulherada. Eu faço uma italiana louca, linda e maravilhosa. É um filme inteligente, que mostra o panorama da mulher brasileira. As mulheres que se tornaram machistas estão ali, porque tem a mulher macha, patriarcal, e tem as outras que não são.” Segundo a atriz, o filme será rodado em 2022.

O que ela, que ergueu a bandeira da libertação sexual feminina ao lado da amiga Leila Diniz nos anos 1960, pensa das mulheres de hoje? “A pílula liberou muito as mulheres na área sexual. A mulher pode fazer o seu sexo com mais de um, como quiser. Mas eu acho que o que fica perdido hoje em dia, em todas as áreas, é o amor. A conquista do sexo foi feita, mas se perdeu o amor. Trepa-se, trepa-se, trepa-se muito. Ama-se, ama-se, ama-se nada. Pouco amor, muita trepação.”

Ítala, que já foi vacinada com duas doses contra a Covid-19, conta que segue isolada e mantendo todos os cuidados, como se não tivesse recebido o imunizante. E diz que, no último ano, escreveu duas peças teatrais e diversos contos, que devem ser lançados em livro futuramente.

“Eu adoro escrever. E eu gosto da solidão. Eu sou uma pessoa que precisa de tempo para pensar. E também, se eu me sinto só, abro a porta, dou dez passos e já estou na casa da família.” Em maio deste ano, ela deixou a capital fluminense para morar na Região dos Lagos, no Rio.

“Acredito que se todo mundo for vacinado e se a gente puder ver que o Brasil é conduzido para o bem, e não para o mal, os [meus] anos 80 poderão ser maravilhosos. Sem maldades, sem ódios.”

Retrato da atriz Ítala Nandi - Felipe O'Neill/Divulgação

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