Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
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Uma lição sobre dor e outra sobre amor

Minha mãe detestava que eu jogasse bola, mas não a ponto de me ver sofrer por ser impedida de ser quem eu era

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Milly Lacombe

Alguns dos maiores traumas de nossas vidas são adquiridos muito cedo. Eu tinha sete anos.

Na ocasião, como fazia todos os dias, aproveitei o recreio para jogar bola com meus amigos. Era uma quadra de cimento, pequena e cercada por um alambrado. Cabiam uns sete de cada lado.

Nesse dia, o dia do trauma, duas professoras vieram até a quadra, pediram que eu saísse do jogo e fosse falar com elas do lado de fora.

Deixei meu time desfalcado e, suada e descabelada, um clássico da minha infância, fui. Ainda não tinha aprendido a desobedecer.

No colégio Santa Maria, na zona sul de São Paulo, um grupo de meninas conquistou dias específicos no intervalo para jogar futebol - Jardiel Carvalho - 13.nov.2018/Folhapress

Elas então me comunicaram que a partir daquele momento eu não poderia mais jogar bola no recreio porque meninas não deveriam jamais jogar bola.

E então uma delas me pegou pelo braço, enquanto a outra ajeitava meu cabelo com a palma da mão, e me levaram para uma sala escura onde minhas colegas de classe celebravam o que aparentemente era o aniversário de uma das dezenas de bonecas espalhadas pela sala.

Havia uma mesa posta, um bolo que parecia ser de verdade e muitas coisas ao redor dele que pareciam ser de mentira.

Fui para um canto da sala, sentei e chorei. Ninguém ligou.

Na volta do recreio, meus amigos quiseram saber o que tinha acontecido e eu não quis explicar nem contar onde as professoras me colocaram durante o intervalo.

As meninas me olhavam de longe e cochichavam entre si. Os meninos tentavam me consolar ainda que não soubessem o que, afinal, eu tinha. Um deles perguntou se alguém da minha família tinha morrido e as professoras foram me avisar bem na hora do jogo. Não era isso, eu disse baixinho balançando a cabeça.

Estávamos todos confusos e confusas. Ainda não sabíamos, mas tínhamos sido apresentados ao preconceito.

A lição daquele dia, misturada ao alfabeto e ao som de cada letra, foi a intolerância devidamente ensinada por uma escola de elite paulistana.

Em casa, não quis comer nada e pouco falei.

Minha mãe quis saber o que eu tinha. Não ousei dizer porque era certo que ela concordaria com as professoras que queriam que eu brincasse de boneca, uma brincadeira que nunca entendi e que sempre me deixou um pouco apavorada porque as bonecas, muito pálidas e inanimadas, me davam medo. Minha mãe, que detestava que eu passasse os dias jogando bola e vendo futebol pela TV, ficaria do lado das professoras.

Como ela não parou de perguntar, acabei contando. Minha mãe não disse nada, mas pelo menos parou de querer me obrigar a comer.

No dia seguinte, em vez de me deixar na porta da escola como sempre fazia, estacionou o carro e entrou me puxando pelo braço. Fomos parar na porta da sala da diretora. Minha mãe entrou sem bater e eu tive a certeza de que ela iria agradecer as professoras por me ensinarem o que era ser uma menina.

Mas eu estava errada.

Ali, na frente de outras professoras, minha mãe disse que se me impedissem outra vez de jogar bola ela iria me tirar daquele colégio.

Deixou bem claro, num tom de raiva que eu nem sabia que existia, que, se eu não estivesse machucando ninguém, então elas que me deixassem fazer o que eu bem entendesse no recreio. E que ninguém nunca mais penteasse o meu cabelo porque se o fizessem ela daria um murro em quem fez. Assim ela disse e eu não duvidei que daria mesmo.

Minha mãe detestava que eu jogasse bola e detestava em igual medida meu cabelo sempre despenteado como o de um menino. Mas, talvez, não a ponto de me ver sofrer por ser impedida de ser quem eu era.

Naquele dia minha mãe me deu uma lição sobre dor e uma outra, maior, sobre cuidado, respeito e acolhimento, essa combinação que, na verdade, a gente chama de amor.

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