Entenda o drill, estilo de rap sombrio com graves que 'deslizam', marca do MC Leall

Brasileiros incorporam ritmo que nasceu em Chicago, cresceu com a música eletrônica inglesa e explodiu com Pop Smoke

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O rapper carioca Leall

Capa do disco 'Esculpido a Machado', lançado em 2021 pelo rapper carioca Leall Divulgação

São Paulo

“Minha vida é suja como as rimas do Chief Keef”, canta o rapper carioca Leall na faixa “Desfile Bélico”. A música saiu em “Esculpido a Machado”, disco lançado neste ano que atualiza e traz novos elementos no retrato da vida e da violência no entorno do tráfico no Rio de Janeiro.

Mas, além do trabalho poético de Leall —que inclui referências a “Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais MCs, ao funk proibidão e até a “Capitães da Areia”, de Jorge Amado—, o álbum abre as portas da experimentação eletrônica que vem transformando a arte de rimar sobre batidas no Brasil. É uma absorção orgânica do drill e do grime, gêneros que têm raízes nas Américas, mas que se estabeleceram no Reino Unido.

O drill surgiu em Chicago, há cerca de dez anos, como um desdobramento do trap —estilo de rap que hoje é o mais escutado no mundo. Chief Keef, o MC americano lembrado por Leall, é um dos expoentes do estilo que ganhou desdobramentos em Londres e estourou com o rapper Pop Smoke em sua vertente de Nova York.

Marcado pelo clima sinistro e pelos graves que “deslizam” —oscilam—, o drill incorpora esteticamente a violência explícita, algo que está no universo de Leall. Ele canta que o homicídio, na favela, é uma "espécie de ensino natural, onde a criança aprende a olho nu a destravar o parafal".

“Quis passar a violência como algo cotidiano. As crianças estão ali [na capa do disco] de forma sutil, brincando, e a violência está em torno delas. Na minha mente, a capa gira muito mais em torno das crianças do que de mim e das armas. É sobre eles estarem nesse meio, brincando e estudando, enquanto tudo isso acontece.”

Leall desenha cenas com as músicas —o corpo estirado na Linha Amarela, as tensões com a polícia— e usa o drill para criar a atmosfera necessária. “Quis trazer para a música o que a gente vê no cinema. Tem bastante referência ao Martin Scorsese. E eu curto muito essa ideia de passar a violência olhando para os detalhes. Criei pensando nisso.”

O MC de 19 anos de Marechal Hermes, na zona norte do Rio, explora também as contradições da cidade natal. “A gente vive em torno disso. São dois mundos. Tem ali a praia e, quando você atravessa o túnel Rebouças, já tem outro cheiro, outro ar, tá ligado? O drill combina bastante com essa tensão.”

De certa forma, o disco de Leall soa como um filme de terror ou suspense que, apesar de expor a tragédia, traz soluções para os meninos que ganham vida pela caneta do rapper. “É o pensamento de que está tudo uma merda, mas eu vou conseguir. Ouvi muito da minha família que eu não estudava, que eu não ia dar certo. E eu estava querendo acreditar que eu não estava maluco, que eu gostava de música e ia conseguir.”

“Esculpido a Machado” é um dos álbuns recentes que incorporam o drill entre diversos elementos estéticos. Leall também usa batidas do grime, o estilo britânico tão ligado à música eletrônica quanto ao hip-hop, e com ecos da música e da cultura jamaicana, que já tem bases no Brasil.

Um dos primeiros rappers a usar tanto o grime quanto o drill foi o baiano Vandal, que rimou em cima de uma base do Chief Keef na faixa “40L”, de 2014, e já usa elementos do grime desde o fim dos anos 2000. Mas foi só nos últimos dois ou três anos que uma cena de grime se estabeleceu por aqui, com o programa Brasil Grime Show no YouTube, além de discos como “Brime!”, de Febem, Cesvr e Fleezus, e “40º.40”, de SD9, ambos lançados no ano passado.

“Os caras [ingleses] têm uma relação com o futebol muito forte. Senti mais proximidade por conta disso, do estilo de vida deles, como eles se vestem. Lembra bastante como a gente vive aqui”, diz Leall.

Para um ouvinte desavisado, drill e grime podem soar como a mesma coisa. Ambas são músicas rimadas com forte influência dos estilos eletrônicos britânicos, como o jungle, drum and bass, dancehall, dubstep e o UK garage, entre outros. Mas há diferenças conceituais e práticas entre eles.

O drill tem origem direta do hip-hop e tem mais a ver com o trap —estilo de rap mais em alta no Brasil e no mundo atualmente— do que com a música eletrônica. Já o grime vem da música eletrônica, onde os DJs têm papel fundamental na criação das bases a partir dos estilos eletrônicos.

Um exemplo é o surgimento recente do drill de Nova York. O estilo ficou muito conhecido na voz de Pop Smoke, MC americano que foi assassinado aos 20 anos, teve músicas entoadas nas manifestações do Black Lives Matter e é influência para diversos beatmakers no Brasil. Mas em vez das rimas socialmente conscientes, ele cantava sobre fazer festa e ter estilo, temas que marcam o trap, como no hit “Dior”.

“Ele lançou música com artistas americanos, como Migos e Travis Scott. E a gente tem isso de só olhar para as coisas quando americano faz. E também tem o fato de ele ter morrido novo. Aqui a galera abraçou pela vivência ser parecida, apesar de aqui ser muito mais violento do que lá fora”, diz Antconstantino, um dos fundadores do Brasil Grime Show e DJ referência da produção de grime no Brasil. “Na cena lá fora, muita gente faz as duas coisas, DJ toca grime e toca drill, assim como MC de grime canta drill.”

Antconstantino comenta a diferença do grime para o drill com uma metáfora simples —“bolo e pão vêm da mesma padaria, mas isso não quer dizer que bolo e pão sejam a mesma coisa”— e prevê que o estilo vai ser muito usado, até ficar saturado, por MCs famosos. “Tem duas cenas. Uma galera que acompanha essa cultura, e a galera que já é famosa e vai pular para o drill agora.”

O DJ e produtor mineiro Vhoor recentemente incluiu batidas de drill no EP “Outro Rolê”, do rapper FBC. O trabalho significa uma abertura estética na obra do MC, que ficou conhecido como parceiro de Djonga no coletivo DV Tribo.

“Comecei a ver coisas ali que lembravam o trap, mas com diferenças no ritmo, na disposição das caixas. O BPM [batidas por minuto] é mais puxado para frente, entre 140 ou 145. E a linha de baixo é muito parecida com o que nós brasileiros fazíamos no SoundCloud, o grave com slide”, ele diz.

Vhoor começou a pesquisa do estilo há cerca de dois anos. “Eu estava querendo introduzir essa cena do grime aqui em Belo Horizonte também. E nessa pesquisa de apresentar coisas ligadas a Londres, encontrei o drill, que conversava muito mais com o que eu já fazia, que era o trap. E a disposição dos elementos é mais próxima do funk, que é mais suingado que o trap.”

No EP de FBC, Vhoor tenta mesclar organicamente o drill com o cardápio percussivo do Brasil, como a mistura com batidas do candomblé. Mu540, produtor do MC paulistano Kyan, é outro que também experimenta misturando o drill com a música brasileira, no caso o funk.

“O drill pega muito as regionalidades. Já tem o drill australiano, francês e africano. E o drill é mais fácil de ser absorvido que o trap. Fizemos isso com o trap, mas o drill já está nascendo assim. Daqui para a frente, vamos cada vez mais misturar com as nossas referências, e não só adaptar o que vem de lá.”

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