Queijo vegano ganha complexidade com técnicas de laticínios

Produtores se destacam sem a neurose da imitação e com identidade própria

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Por muito tempo a imitação perfeita do queijo foi o "santo Graal" da gastronomia vegana. Os pioneiros do mercado perseguiram o caminho das raízes, com produtos à base de batata, mandioca e povilho, mas apesar da cremosidade (e do corante e do aromatizante), o resultado só contentava os mais desesperados —não tinham complexidade para fazer jus ao nome emprestado.

Mais de uma década depois, o caminho está sendo trilhado pela tradição. Técnicas de fermentação, afinação e bactérias típicas da queijaria animal estão dando vida a dezenas de queijos vegetais à base de castanha de caju, com complexidade de sabor, textura e até terroir próprio.

Queijo pérola negra, da Viveg - LettSousa/Divulgação

A mestre-queijeira Virgínia Cândida é mineira de Jeceaba, a 120 km da capital Belo Horizonte, e aprendeu a fazer queijo ainda criança, numa família que preservou a tradição de trabalhar o leite para consumo próprio.

Quando se tornou vegana, em 2014, resolveu testar as mesmas técnicas com leites vegetais. Ela apurou o método ao longo dos anos, estudou queijos franceses e hoje sua marca, a Viveg, fundada em 2016, produz até 6.000 unidades de queijos veganos por mês, em duas fábricas em Belo Horizonte e uma em Recife.

São mais de 20 tipos, de diferentes cepas de fungos e bactérias usadas na queijaria tradicional. Entre eles queijos complexos, como o pérola negra, um queijo duro que descansa por doze meses, o trem azul, um queijo mofado azul, e o cacau em flor, do tipo brie, com uma fina película de cacau na casca florida.

No processo da Viveg, a castanha é hidratada e fermentada, depois vira um creme, onde as bactérias são inoculadas. A fermentação ocorre nas primeiras 24 horas, quando os bichos consomem o açúcar e a proteína da massa. A partir daí, começa o processo de cura e afinação, quando o queijo endurece e adquire complexidade, em temperatura controlada por pelo menos 60 dias.

"O processo é o que vai dar a identidade do queijo, 70% são as bactérias que você usa, e 30% são como ele é curado e afinado", diz Virgínia, que já rodou o país todo ensinando em aulas e oficinas para mais de mil alunos.

A mestre-queijeira Michele Souza viajou ao lado de Virgínia e hoje tem sua própria microqueijaria vegana, a Queijuaria, em Campinas (SP). No menu estão 18 tipos de queijos, com foco nos azuis, como o gorgonzola, que passa de 40 a 60 dias mofando, literalmente.

"Inicialmente eu comprava as culturas de bactérias, mas hoje eu as fabrico. O mofo azul está no ar, então, conforme variam a vegetação, umidade e solo, ele imprime uma característica própria no queijo, um terroir. O meu tem esse terroir de Campinas", conta.

Em São Paulo, o stylist e queijeiro vegano Márcio Banfi, da Casa Banfi, faz queijos com uma técnica um pouco diferente dos métodos tradicionais. Em vez de cultura de bactérias de laboratório, ele usa um tipo de probiótico natural chamado rejuvelac.

Esse fermento é obtido pela fermentação espontânea de grãos germinados imersos em água. A técnica, de origem romena e popularizada ainda nos anos 1960, é a pioneira dos queijos veganos fermentados.

A identidade de cada queijo de Banfi é garantida pela receita do rejuvelac, que usa grãos como feijão-bolinha, lentilha e ervilha. "É a forma de cuidar de cada um que dá essa diferença no sabor, é a temperatura, a troca da água, o tempo de germinação", explica.

Ele tem uma produção pequena, que vende pelas redes sociais e em uma feira de rua na região central de São Paulo. Os mais procurados são os queijos meia-cura. "Os queijos veganos envolvem uma curiosidade na experiência. É você comer algo e perceber que é possível chegar nesse sabor com esse processo."

Outras sementes e castanhas também são utilizadas como base pelos queijeiros, como a amêndoa e a macadâmia, mas a de caju é a preferida por ser macia e suave, não ter casca (o que facilita o processamento) e estar sempre disponível no mercado.

Ou quase sempre. Nos últimos dois anos, a seca castigou os cajueiros brasileiros, que são antigos e produzem pouco por área, e o preço disparou. Segundo o Instituto Caju Brasil, o consumo de castanha cresce cerca de 10% ao ano e os produtores estão tendo que importar para cumprirem seus contratos.

Para o engenheiro de alimentos Paulo Grassi, diretor de produção do Galpão Cuccina, que produz queijo vegano em escala industrial, além da dificuldade em garantir o abastecimento de castanhas de qualidade certificada, falta literatura na indústria.

"É um mercado novo, tem poucos equipamentos específicos. Para os ingredientes animais há literatura sobre a composição química e os resultados. No mundo vegetal ainda é muita tentativa e erro", diz.

Mas, se a falta de castanhas pode ser contornada, a de regulamentação, não. O uso do termo queijo para se referir a fermentados de base vegetal tem irritado a indústria do leite, que cobra há anos uma legislação específica.

O Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Vegetal da pasta está preparando uma proposta para consulta pública sobre o uso dos termos "plant-based", "queijo", "leite", "carne" e "peixes" vegetais. A expectativa é apresentá-la ainda este ano.

Casa Banfi

instagram.com/casa_banfi

Queijuaria Vegana

instagram.com/queijuaria.vegana

Viveg

www.viveg.com.br

Galpão Cucina

www.galpaocucina.com.br

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.