Em Inhotim, Fartura põe a Amazônia no prato para preservar cozinha originária

Para 2ª edição, festival de gastronomia trouxe chefs da região para ensinar como era a comida antes dos portugueses

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Brumadinho (MG)

Chefs da Amazônia ensinaram técnicas de comida originária no Fartura, o mais antigo festival de gastronomia do Brasil, que aconteceu entre 30 de setembro e 1º de outubro no Inhotim, na cidade Brumadinho, Minas Gerais.

Ao lado das coloridas paredes da "Invenção da Cor, Penetrável Magic Square #5, De Luxe", de Hélio Oiticica, a segunda edição do evento combinou barraquinhas de produtores locais, restaurantes, aulas práticas e palestras com especialistas sobre o que se comia no Brasil antes da colonização.

Chef Ju Duarte, da Cozinha Santo Antônio, de BH, e a chef Bela Gil fazendo arroz de primavera
Chef Ju Duarte, da Cozinha Santo Antônio, de BH, e a chef Bela Gil fazendo arroz de primavera - Gustavo Andrade/Divulgação

Segundo o chef Roberto Smeraldi, que realizou estudos sobre o tema para a iniciativa de desenvolvimento sustentável Amazônia 2030, as cozinhas amazônicas —no plural— nasceram do encontro entre diferentes povos.

A alimentação no rio Negro, no norte do Amazonas, mesclou conhecimentos dos aruak, baniwa-baré, tukano e yanomami. No Pará, veio do choque entre indígenas, escravizados e portugueses. Já no Acre, nasceu de uma raiz indígena, nordestina e libanesa, da época do auge da borracha.

Por isso, técnicas e alimentos de cada lugar variam entre si, afirma Smeraldi. Indígenas do oeste, por exemplo, estranham a fruta bacuri, enquanto aldeias do Mato Grosso desconhecem o tucupi —suco de mandioca fermentada que é tradicional em outras partes da região.

Essa diversidade pulou para produtos corriqueiros dos brasileiros, como açaí e chocolate. Até mesmo o pão de queijo, feito com polvilho, um ingrediente com técnica indígena, nasceu do encontro com os povos originários.

Festival Fartura em Inhotim
Festival Fartura em Inhotim - Gustavo Andrade/Divulgação

Mesmo que a influência tenha sido apagada pela violência na colonização, muito da cultura alimentar originária conseguiu se preservar. Kamirrã Waurá, cacica e cozinheira indígena do Xingu, em Mato Grosso, mostrou no Fartura como seu povo faz o polvilho.

Chamado de beiju, o ingrediente é produzido a partir da mandioca ralada e passa por secagem ao sol. O menu do festival recebeu uma versão de beiju em farofa para acompanhar costela de boi defumada em madeira de pêssego.

"Nossa alimentação é toda natural", diz a cacica. Além da mandioca, as refeições dos waurá incluem aves e peixes, que passam por um processo de defumação por moquém, grelhas de madeiras cuja brasa retira a umidade do alimento. Depois de moqueadas, podem durar até 30 dias.

Os peixes, temperados com pimenta-de-passarinho e sal de aguapé, ainda podem ser embrulhados em folhas de coqueiro, em uma preparação conhecida como pokeka.

Segundo o chef Roberto Smeraldi, a técnica encapsula o colágeno do peixe e o mantém com textura macia, mesmo com menos umidade. "É uma preparação baseada em saberes tradicionais", diz.

A pokeka também é empregada pelo chef Leo Modesto, do Sítio Mearim, em Curuçá (PA), a centenas de quilômetros do Xingu. Ele aprendeu o processo com a família e o usa como forma de contribuir com a culinária dos seus ancestrais.

"Como cozinheiro no Pará, já fiz muitos filés com fritas. Mas chegou um momento em que queria fazer pratos da minha cultura", diz ele, que criou um projeto no estado para imergir visitantes no ciclo da mandioca, do plantio à elaboração do tucupi.

No Fartura, Modesto dividiu com a cacica waurá uma aula para ensinar a preparar frutos do mangue com tucupi preto e jambu com beiju. Depois de cada sessão, o público tinha a opção de comprar o prato feito pelos chefs nas demonstrações.

Segundo Carolina Daher, curadora do Fartura junto com a chef Morena Leite, a escolha de comida originária acompanha temas que já vinham sendo trabalhados pelo festival: em especial, a origem dos alimentos até o preparo do prato.

"Nada mais original do que trazer a verdadeira comida brasileira", afirma Daher. "Precisamos olhar para trás e entender toda a tecnologia e todos os métodos que vieram antes".

A ideia aparece nos estandes dos restaurantes do festival, que continham pelo menos uma receita com ingredientes da Amazônia. No menu da Dona Lucinha, por exemplo, havia um bolinho de pato com mandioca, assinado pela chef Debora Shornik, do Caxiri, em Manaus.

Paulistana, mas radicada na Amazônia, Shornik conta que aprendeu muito com as cozinheiras ribeirinhas e indígenas com quem trabalhou em Novo Airão (AM). Esse contato se traduziu em respeito aos ingredientes originários, diz ela. "Nunca mais usei vinagre desde que conheci o tucupi, que pode ser usado também para temperar saladas".

Bela Gil, apresentadora da GNT e dona do restaurante Camélia Òdòdó em São Paulo, também marcou presença no Fartura, mediando duas mesas que discutiram comidas originárias.

Segundo a chef, esse tipo de comida oferece um caminho alternativo à forma de consumir. Para preservar a cultura alimentar, é preciso não só conhecer sobre os alimentos, mas também comê-los, afirma a chef.

"Comer é um jeito de perpetuar as técnicas originárias que podem reverter o futuro da catástrofe ambiental", diz.

O jornalista viajou a convite do Fartura

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