Chefs negros avançam, mas ainda têm de lutar contra estereótipos

Empreendedores furam a bolha, mas enfrentam resistência para ter reconhecimento no mercado, liderado por pessoas brancas

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São Paulo

Com representantes como Jiló, em Salvador, Preto Cozinha e Organicamente Rango, em São Paulo, chefs e empreendedores negros vêm se destacando no mercado, ainda liderado por pessoas brancas. Apesar do avanço, vivem situações de preconceito e enfrentam resistência para obter reconhecimento e fugir de estereótipos.

Rodrigo Freire, dono e chef do Preto Cozinha, no salão do restaurante, em Pinheiros, São Paulo
Rodrigo Freire, dono e chef do Preto Cozinha, no salão do restaurante, em Pinheiros, São Paulo - Danilo Verpa/Folhapress


No casarão frequentemente cheio do Preto Cozinha, em Pinheiros, região oeste da capital paulista, não há elementos que remetam à Bahia, como fitas do senhor de Bonfim e cores vibrantes. O salão tem paredes brancas de tijolos à vista e esculturas nas paredes —ganhou, agora, um speakeasy no andar superior, o Nada.

Chef e dono, o soteropolitano Rodrigo Freire deixa claro que valoriza a ancestralidade e a cultura negra, mas acha importante que as pessoas não se enquadrem em estereótipos.

"Não teria uma baiana de acarajé com turbante no meu salão. Não porque eu ache ruim, mas porque precisamos ocupar outros espaços. Parece que se eu for preto, só posso comer comida de azeite, ser do candomblé. A branquitude colocou na cabeça que a gente é essa alegoria. E não nos cabe ser mais nada mais além disso", explica ele.

Quando inaugurou o Preto Cozinha, em abril do ano passado, o chef decidiu usar seu apelido de infância como nome para batizar a casa."É natural as pessoas serem chamadas de preto [na Bahia]. Quando a ficha do impacto do nome ser preto caiu, a gente já estava aberto", diz ele, que deixou a carreira como advogado para abrir o endereço.

Cerca de um ano e meio depois da inauguração, Rodrigo diz que o nome da casa já motivou situações de racismo, como de clientes perguntando se o dono do restaurante era preto ou se tem sócios. "Paguei cada cadeira que está aqui, não tenho investidor. Começamos com 40 lugares."

Arroz de marinheiro com frutos do mar grelhados, tempura de cebola e aïoli do restaurante Jiló
Arroz de marinheiro com frutos do mar grelhados, tempura de cebola e aïoli do restaurante Jiló - Elder Almeida/Divulgação

Para compor o cardápio, partiu de memórias das cozinhas das tias e da mãe e as somou a uma extensa pesquisa sobre cozinha baiana. O resultado são interpretações pessoais de receitas tradicionais, como o peixe do dia na brasa com farofa de banana-da-terra, minilegumes e creme de moqueca (R$ 107).

Patty Durães, pesquisadora de culturas alimentares, afirma que falta espaço para que pessoas negras possam protagonizar a própria narrativa no cenário gastronômico.

"É necessário que exista esse lugar de direito de cozinhar o que a gente quiser, mesmo que seja sobre fundamentos eurocêntricos, asiáticos. Mas que a gente esteja lá, tendo as mesmas oportunidades", diz ela.

Muitas vezes, falar sobre temas delicados para a população negra, como racismo, acaba sendo a porta de entrada para a visibilidade, diz Patty.

"E a gente fala porque precisa ir furando bolhas, precisa pegar essas oportunidades e fazer delas uma outra construção. Mas a gente também quer falar sobre a riqueza e a propriedade intelectual que a gente vem gerando. É pra esse lugar que falta espaço."

Dono do Jiló em Itacaré, na Bahia, há oito anos, o carioca Ícaro Rosa inaugurou no ano passado uma nova casa com o mesmo nome em Salvador. As duas servem receitas contemporâneas, criadas tanto pelas memórias da comida de casa quanto pela experiência em outros restaurantes —entre eles, o Irajá Gastrô, o Térèze e o extinto Asia (restaurante com comida desse continente liderado por chefs malaios).

Entre os pratos servidos no endereço de Salvador estão o tempurá de camarão com vatapá (R$ 55), o carbonara do mar, com polvo e camarão grelhado com molho de páprica e farofa de pão (R$ 120), e o frozen de mel de cacau (R$ 34).

"Procuro fazer o que não se espera de uma cozinha preta para dar uma chacoalhada. O Jiló é um restaurante de certa forma elegante. Existem pessoas que acham que eu deveria ter [apenas] um bar que toca pagode", afirma Ícaro.

O chef, lembra, porém, que seu trabalho é resultado da construção de uma cozinha ancestral. "Várias mulheres negras abriram o caminho para eu ser o que sou. Mas é importante mostrar que podemos ser milhares de coisas."

A socióloga Taís de Sant’Anna Machado reconhece o destaque de chefs negros e negras, mas afirma que o campo é estruturado de forma que essas pessoas não sejam reconhecidas. Ela escreveu o livro "Um Pé na Cozinha" (ed. Fósforo, 400 págs.), que nasceu de sua tese de doutorado sobre o trabalho de cozinheiras negras no Brasil.

Nele, defende que ao longo de três séculos e meio foram as cozinheiras negras o grupo majoritário a alimentar o país. A pesquisadora se refere à escravidão, mas também defende que o trabalho doméstico, o trabalho culinário de rua e de restaurantes continua bebendo de uma exploração econômica de mulheres mal remuneradas.

De uma certa forma, Thiago Vinícius de Paula da Silva, à frente do restaurante Organicamente Rango, no Campo Limpo, extremo sul de São Paulo, ajudou a subverter lógicas ligadas ao cenário gastronômico. Ele é parceiro da mãe, Cleunice Maria de Paula, em dois negócios. Conhecida como a Tia Nice, ela foi faxineira e doméstica antes das casas serem inauguradas.

"É um certo tapa na cara quando a gente vê uma mãe da periferia circulando o mundo, dando palestra, trabalhando como chef", diz Thiago.

A história começou em 2017, quando ele, que tinha uma agência cultural, passou a comprar alimentos orgânicos direto de produtores e vender na vizinhança.

Patricia Durães, pesquisadora de culturas alimentares
Patty Durães, pesquisadora de culturas alimentares - Divulgação

Hoje, ainda sente falta de estar presente no modelo de negócios de grandes marcas. "Para uma empresa colocar a geladeira dela aqui demorou cinco anos." Mesmo assim, o restaurante vai bem e atrai não apenas o público do bairro, mas visitantes de outras áreas da capital.

"Temos a oportunidade de refletir sobre nosso lugar na sociedade. Cozinhamos para os nossos, para que a possamos fortalecer mecanismos de segurança alimentar, construir pontes e fazer pessoas virem para a quebrada", diz ele.

Jiló
Al. Salerno, 49, Pituba, Salvador. @jilosalvador

Organicamente Rango
R. Batista Crespo, 105, Campo Limpo, São Paulo. @organicamenterango

Preto Cozinha
R. Fradique Coutinho, 276, Pinheiros, São Paulo. @preto.cozinha

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