Descrição de chapéu Consciência Negra

Com duas casas, Dona Carmem Virgínia ajuda a projetar cozinha de terreiro

Chef e iabassê pernambucana abriu em maio seu segundo restaurante, instalado na Vila Madalena, em São Paulo

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Retrato de dona Carmem Virginia, dona do restaurante Altar Cozinha Ancestral, no bairro da Vila Madalena Karime Xavier/Folhapress

São Paulo

Os olhos de quem entra no restaurante Altar, aberto em maio deste ano na Vila Madalena, em São Paulo, logo se enchem de cor. Ali, prateleiras e nichos fazem homenagem ao candomblé ora em representações sincréticas, como a de Cosme e Damião, ora com figuras negras que retratam divindades como Xangô e Iemanjá.

Antes da chef da casa, Dona Carmem Virgínia, 47, abrir seu primeiro endereço em 2014, em Recife, pouco se sabia da cozinha de terreiro no circuito gastronômico do país. Saída do bairro de Santo Amaro, na capital pernambucana, ela conquistou o Brasil com sua comida de axé.

"Refiz minha trajetória. Hoje sou uma mulher próspera, que pode ganhar dinheiro e enriquecer a mim e aos meus servindo", afirma a cozinheira, que, no endereço de São Paulo, tem sociedade com a cantora Luísa Sonza e a empresária Fátima Pissara.

Assim como em Recife, a filial paulistana se apresenta como um espaço de devoção, mas também exibe em suas paredes elementos da cultura popular pernambucana, como o maracatu e o frevo.

Não à toa, Dona Carmem, além de ser cozinheira formada pelo Senac, é também iabassê —como se chama a responsável pela cozinha nos rituais do candomblé.

Dona Carmem Virgínia - Karime Xavier/Folhapress

Também esteve à frente do programa Uma Senhora Panela, série de dez episódios na GNT em que recebeu nomes como Criolo, Luísa Sonza e Lia de Itamaracá para um bate-papo enquanto preparava suas receitas. Uma segunda temporada da produção deve ser exibida em 2024.

Enquanto crescia, Dona Carmem teve como referência sua avó Edna Amara Mota dos Santos, que criou 9 filhos e 14 netos e era conhecida pela perseverância na comunidade em que moravam.

"Ela quis que eu me chamasse Carmem Virgínia porque queria que a neta tivesse o nome de uma pessoa predestinada", diz a chef, que herdou o nome de uma líder religiosa conhecida da família, Carmem, e da entidade que ela encarnava, Virgínia.

Dona Edna era uma mulher branca que perdeu seu marido, um homem negro, muito cedo. Ela, então, assumiu os cuidados da casa e dos filhos.

"Quando falo sobre a forma como eu fui criada, das palavras que minha avó dizia, automaticamente as pessoas imaginam que era uma senhora preta", diz.

A avó, que morreu há quatro anos, é sempre lembrada como uma referência na vida de Dona Carmem. No restaurante, na entrada da cozinha, uma homenagem se faz à Edna com uma foto das duas acompanhada da receita de galinha de cabidela da matriarca —que tem uma versão adaptada no Altar.

A chef lembra com orgulho e sorriso no rosto de sua infância. Isso porque, na escola, além de ser uma aluna admirada pelos professores, ainda escrevia cartinhas de amor para as colegas enviarem aos pretendentes com sua caligrafia impecável. O pequeno negócio até te rendia uma graninha.

"Era uma daquelas pessoas que escrevia tudo o que via. Tinha muitos cadernos, papéis de carta", diz Dona Carmem. Por isso, a chef até cogitou ser jornalista. Mas no meio do caminho, o candomblé apontava um outro rumo para ela: o da cozinha.

Frequentadora de um terreiro desde criança, com o tempo, ela foi subindo na hierarquia religiosa. Aos 23 anos, quando se tornou iabassê, Dona Carmem recebeu o primeiro reconhecimento de suas habilidades."

Todo mundo ficava impressionado dentro do terreiro. Aí, começaram a dizer ‘por que você não abre um restaurante? Vende essa comida maravilhosa!’", diz a chef que é filha de Xangô, orixá que representa a justiça na religião.

Logo, o sucesso de sua comida ultrapassou os limites daquele espaço religioso e as pessoas passaram a procurá-la. Dona Carmem, que já havia trabalhado vendendo planos de saúde e acarajé de porta em porta, resolveu se profissionalizar e cursar gastronomia no Senac de Recife.

Sem abandonar suas raízes, a chef foi responsável por implementar estudos sobre a cozinha de orixás na grade de cozinha brasileira de seu curso. "Só com uma educação cultural afro-brasileira vamos derrubar o racismo e a intolerância religiosa", afirma.

Precursora no tema, ela encontrou obstáculos em seu caminho. "Colecionei alguns desafetos, deixei de ser convidada para eventos porque sempre fiz recorte racial e sempre vou fazer", diz Carmem.

A cozinheira, então, ergueu seu restaurante em 2014 com R$ 15 mil e muita ajuda de amigos e incentivadores —entre eles, fornecedores que vendiam a prazo ingredientes como feijão-verde. "Eu estava deixando um casamento de 18 anos muito machucada, com muitas marcas", afirma.

Durante a pandemia, a chef se aventurou nas redes sociais para ensinar pratos saudáveis e simples para o seu público. A mídia espontânea foi a responsável por levantar fundos e impedir a falência do Altar Cozinha Ancestral, mais um prejudicado com as restrições impostas pela Covid-19.

Recuperado o susto, ela também se valeu das relações de proximidade para dar um próximo passo: abrir a segunda unidade de seu restaurante na capital paulista e criar um novo vínculo com a cidade.

"Sinto que botaram em São Paulo um estigma de que aqui as pessoas são frias. Não é nada disso. Aqui as pessoas têm o coração grande e abriram os braços para mim", diz ela. Hoje, ela serve, entre as receitas, muitas que fazem referência a oferendas de orixás do candomblé.

Uma delas é o eparrei, saudação para Iansã que dá nome a uma das entradas com cinco acarajés, vatapá, camarões e molho lambão (R$ 55). Os bolinhos de feijão-fradinho fritos em azeite de dendê são também associados à divindade dos ventos, raios e tempestades.

Outra opção para beliscar é Ogunhê, um quarteto de bolinhos de feijoada com aïoli de bacon e vinagrete de laranja com couve (R$ 48). A feijoada é comumente associada ao orixá guerreiro Ogum, relacionado a metais e à tecnologia.

Mas Dona Carmem tem ainda muitos planos. O principal deles é abrir uma portinha onde possa vender só acarajés ao lado do marido, Vevé. "É o amor da minha vida, um amigo de uma vida toda."


Altar Cozinha Ancestral

R. Medeiros de Albuquerque, 270, Vila Madalena, região oeste, São Paulo @restaurantealtarsp
R. Frei Cassimiro, 449, Santo Amaro, região central de Recife, Pernambuco @altarcozinhaancestral

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