Descrição de chapéu alimentação

Projeto desfaz mitos sobre a origem de receitas brasileiras como feijoada e brigadeiro

Criado por pesquisadores, Comer História contesta versões difundidas sobre a criação de pratos tidos como típicos

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São Paulo

Prato nacional brasileiro, a feijoada não foi inventada por escravizados usando restos de carnes dos seus senhores, como muito ainda se repete. Mesmo que seja uma história simpática e popular, o brigadeiro não foi inventado de repente para arrecadar fundos para uma campanha presidencial nos anos 1940. Por mais que nordestinos e paulistas briguem para saber de quem é o cuscuz "de verdade", os dois são variações de um prato típico do norte da África registrado em um livro do século 13.

Receita do tradicional brigadeiro
Receita do tradicional brigadeiro - Bia Fanelli/Folhapress

A internet e as redes sociais estão cheias de discussões sobre a "autenticidade" de determinados alimentos, e a história de algumas das comidas mais populares do país continua cercada de mitos. Mas "nem todos os pratos têm uma certidão de nascimento bem definida ou foram criados por uma única pessoa para um determinado fim", explica a historiadora Ana Carolina Viotti em entrevista à Folha.

Junto com mais dois colegas, Viotti trabalha desde 2020 para desfazer essas e outras "lendas" sobre o que as pessoas comem e para divulgar conhecimento mais aprofundado e bem embasado sobre a história da alimentação. Com o projeto Comer História, eles apresentam suas pesquisas nas redes sociais, abrindo uma discussão sobre os processos que levam ao surgimento de novos pratos e à transformação dos hábitos alimentares no mundo.

Sobre a lenda criada para aquele que Câmara Cascudo chama de "prato mais gloriosamente nacional do Brasil", a feijoada, Viotti explica, ao estudar a história do Brasil colonial, a alimentação das populações escravizadas não era prioridade, e não incluía carnes (nem mesmo as que hoje podem-se pensar menos nobres).

"Não encontramos nada sobre a feijoada. Há o recurso ao feijão, mas a recorrência do consumo de carne não existia", diz. Segundo ela, "falar em restos de carnes no preparo da feijoada é uma projeção de valores atuais, do que as pessoas gostam ou não, para o passado".

A feijoada como a conhecemos hoje é uma criação até recente, do final do século 19, diz Câmara Cascudo. Desde a formação do Brasil se comiam pratos que misturavam de carne e feijão, uma variação de um cozido português (e de pratos preparados em uma panela só tradicionais em toda a Europa há séculos). A técnica portuguesa se juntou a feijões e carnes tradicionais do Brasil para criar uma versão própria do país, que se consolidou ao longo do século 20 como prato nacional.

Já o brigadeiro, os pesquisadores do Comer História explicam que os registros históricos sobre o docinho são posteriores à campanha política do brigadeiro Eduardo Gomes à Presidência em 1945 (cujo slogan era "vote no brigadeiro, que é bonito e solteiro"). No final dos anos 1940 há registros sobre doces feitos com leite condensado (incluindo versões feitas com ele já caramelizado como um doce de leite) e chocolate — mas sem manteiga.

Os historiadores fazem referência a um artigo acadêmico do pesquisador Pedro von Mengden Meirelles especificamente sobre o "doce mais famoso do Brasil". Nele, aponta-se que o brigadeiro é resultado da introdução do leite condensado, um produto industrializado, na cozinha tradicional do país em alternativa ao leite fresco no pós-guerra, com mudanças sociais significativas. O doce que surgiu como uma alternativa para tempos de racionamento acabou caindo no gosto da população.

O projeto surgiu durante a pandemia com um objetivo educacional, a fim de popularizar o conhecimento de história. Inicialmente no YouTube, onde publicou 15 vídeos, e hoje com maior frequência no Instagram, o Comer História aborda de forma interessante e aprofundada a origem de comidas como os mencionados acima, mas também da coxinha, da pamonha, do doce de leite, do molho de tomate, do estrogonofe, da caipirinha, da canja de galinha.

Também trata de temas como a importância da imigração italiana na alimentação brasileira, as comidas tradicionais do Carnaval, a tradição da Quaresma, e mesmo da cozinha de Mário de Andrade.

Além do olhar educacional, da pesquisa e da divulgação científica, eles prestam serviços de consultoria sobre temas ligados à história dos alimentos. Entre os projetos mais recentes, está um estudo mais amplo sobre como a cerveja chegou ao país e os processos que levaram à popularização da bebida entre os brasileiros.

A cada nova publicação, fica evidente que o surgimento de cada alimento é complexo, pois trata-se de um produto de muitas forças, e é preciso que muita coisa aconteça ao mesmo tempo para gerar um prato. E a história vem para desmistificar ideias que se tornaram populares.

"Atualmente há uma certa demanda pela ‘verdadeira história’ dos alimentos, como se houvesse uma uma primeira receita original de um prato", diz a historiadora. "E nosso trabalho muitas vezes é frustrar as pessoas e mostrar que muitas vezes conseguimos explicar como surgiram os processos, como eram os contextos em que uma comida surgiu, mas essa grande certidão de nascimento, a paternidade dos pratos, na maioria das vezes não existe".

"Aí o historiador é o chato, que vem relativizar determinadas informações e apresentar outras", diz Viotti. "O que acho legal do nosso trabalho é que às vezes ele vai frustrar certas expectativas, mas vai apresentar uma história que pode ser ainda mais interessante, dentro de um contexto específico, com condicionantes e processos e atores.

Brigadeiro na colher - José Gomes - stock.adobe.com

Este trabalho envolve muita pesquisa em documentos, explica o também historiador Rafael Afonso Gonçalves, que faz parte do projeto. "Uma das nossas grandes preocupações é o trabalho com as fontes, pois muitas vezes as lendas e mitos não adicionam muito. Então tentamos ir atrás dos documentos, verificar se o que se diz realmente tem base histórica."

"A gente consegue responder com método a demandas contemporâneas que envolvem sentimento, que envolvem identidade e que passam pela alimentação, que é uma uma esfera muito simbólica da sociedade", diz Gabriel Ferreira Gurian, o terceiro historiador do grupo. "Tratamos a comida como um ponto de interseção de vários elementos. A partir dela conseguimos pensar a história como um todo."

Segundo Gonçalves, boa parte do trabalho do Comer História atualmente se alinha a um pensamento sobre o significado dessa identidade brasileira e do papel da comida nesse processo. "Isso pode gerar uma certa idealização excessiva, e o trabalho dos historiadores é importante para dar subsídios para essa discussão, para recuperar o que há de verdade na formação da alimentação brasileira com base num lastro histórico."

Para Viotti, por mais que o projeto comece na panela, no prato e na mesa, a ideia é ir além desse espaço. "O importante desse trabalho é que ele nunca é só sobre comida. A partir da alimentação, a gente consegue acessar qualquer esfera da nossa vida cotidiana. A gente pode falar de política, de economia, de família, de hábitos e de cultura, tudo a partir da comida. Tentamos mostrar os alimentos, as receitas e as práticas como porta de entrada para discutir outras coisas de um jeito muito mais gostoso."

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