Uma série de movimentos sociais e de partidos políticos vai entrar com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a maneira como o Estado brasileiro trata a população negra. O documento tem como principais pontos o impacto desproporcional que a violência policial e a insegurança alimentar causam nesse grupo.
A ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) será protocolada nesta quinta-feira (12), véspera do dia 13 de maio, e requisita, entre outra coisas, a elaboração de um plano nacional de enfrentamento ao racismo, além de políticas de redução da letalidade policial e da criação de protocolos transparentes de abordagem policial e de uso da força por agentes de segurança.
A ação apresenta uma série de dados que apontam para violações sistemáticas de direitos constitucionais à vida, à saúde e à alimentação digna, contextos nos quais as populações negras são desproporcionalmente impactadas.
No Brasil, 56% das pessoas se autodeclaram pretas ou pardas, mas esse grupo representa quase 80% das pessoas mortas por policiais e 77% das vítimas de homicídio do país. Entre 2009 e 2019, enquanto o número absoluto de homicídios teve redução de 33% no país, o assassinato de negros aumentou 1,6%.
Entre os lares que têm segurança alimentar, apenas 36,9% eram chefiados por pessoas autodeclaradas pretas ou pardas. Já entre os lares com insegurança alimentar grave, 58,1% eram chefiados por pessoas negras. O texto também cita estudos que apontaram que o impacto da pandemia sobre esse grupo é maior que no restante da população.
O texto sustenta que este é um "cenário de incompatibilidade da vivência da população negra brasileira com os preceitos constitucionais contidos na Constituição Federal de 1988", numa história pontuada por reiteradas ações e omissões do Estado brasileiro.
Negros são desproporcionalmente impactados por violência e insegurança alimentar
Douglas Belchior, historiador e cofundador da Uneafro Brasil e da Coalização Negra por Direitos, que lidera a ação, aponta que duas CPIs, uma na Câmara e outra no Senado Federal, registraram em seus relatórios que "o Estado promove políticas de extermínio dirigido à população negra, especialmente jovens".
"O movimento negro denuncia há décadas o genocídio negro brasileiro", afirma ele. "É fundamental que a mais alta Corte do país admita o crime de lesa-humanidade cometido há séculos contra a população negra, e, a partir daí, constranja o Estado, as instituições e a sociedade promover políticas de reparação histórica", disse.
O texto da ação cita trechos de uma das principais obras do filósofo, ativista e político negro brasileiro Abdias do Nascimento, "O Genocídio do Negro Brasileiro" [ed. Perspectiva, R$ 31,41 em ebook na Amazon; 232 págs.], que aponta que no "processo histórico de formação da sociedade brasileira, estratégias de genocídio foram e ainda são adotadas". Entre os exemplos estão a exploração sexual de mulheres negras, o embranquecimento cultural, a proibição de discussões políticas sobre raça e o apagamento deliberado de dados e arquivos históricos sobre o processo escravagista.
"A população negra brasileira vivencia sistematicamente a negação de direitos, sendo submetida a um processo de genocídio permanente decorrente das desigualdades sociais e raciais resultantes da ação e omissão do Estado brasileiro", descreve o texto da ADPF.
A ação sustenta que ocorrem no Brasil ao menos três dos cinco atos previstos no artigo 6º do Estatuto de Roma, que define o crime de genocídio: homicídio de membros do grupo; ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; e sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial.
"Buscamos o reconhecimento por parte do STF de que existe no Brasil uma política de morte à população negra estruturada no racismo", afirma a advogada Sheila de Carvalho, diretora do Instituto de Referência Negra Peregum e integrante da Coalizão Negra por Direitos, que está à frente da ação. Protocolada por meio das legendas PT, PSOL, PSB, PCdoB, Rede, PV e PDT, a ADPF é integrada também pelos coletivos das Mães de Maio, Mães de Manguinhos, e Mães da Maré.
A data escolhida para o protocolo da ADPF é um duplo marco para a articulação. Dia 12 de maio marca o início dos chamados Crimes de Maio de 2006, quando mais de 50 policiais e 500 civis –principalmente jovens negros moradores da periferia– foram assassinados em São Paulo.
Já o dia 13 é o aniversário da abolição da escravidão no país. A data é chamada por ativistas de Dia da Abolição Inconclusa —segundo esse pensamento, a escravidão oficial acabou, mas a população negra foi abandonada à própria sorte e ficou sem direitos fundamentais.
Para Débora Maria da Silva, cofundadora do movimento Mães de Maio, que reúne familiares de vítimas dos assassinatos de 2006, a data ainda marca os 12 anos do arquivamento das investigações sobre as mortes de centenas de jovens, entre eles seu filho Edson Rogério. "Caiu tudo na vala comum por conta do pedido de arquivamento do Ministério Público e do Judiciário que acatou um pedido desses. Então, precisamos acordar. Vamos para Brasília dizer que vidas negras importam."
A ADPF das vidas negras, como foi apelidada pelos ativistas, segue o rastro da ADPF 653, conhecida como ADPF das Favelas, que pediu a suspensão de operações policiais em comunidades durante a pandemia. O argumento foi aceito pela Corte, que formou maioria em fevereiro deste ano para obrigar o estado do Rio de Janeiro a apresentar um plano de redução da letalidade policial.
"Essa ADPF abriu caminho para uma intervenção maior do Judiciário e ela foi extremamente importante, mas ela é territorializada no Rio de Janeiro e temporalizada na pandemia", aponta Sheila. "Como não se trata de uma realidade só da pandemia ou só do Rio de Janeiro, fizemos um pedido que se amplie para outros espaços onde a gente tem visto o povo preto morrer."
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