Sem influência de torcidas, atletas negros têm desempenho melhor na Europa

Estudo indica que interferência de ofensas racistas afeta rendimento de jogadores

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Bruxelas e São Paulo

Torcedores estão de volta aos estádios europeus após muitos meses de confinamento para conter a Covid-19, mas a notícia não é completamente boa para uma parte dos jogadores: a que tem a pele mais escura. É o que indica um estudo feito na Escola de Altos Estudos Comerciais (HEC) da Universidade de Lausanne (Suíça), pelo doutorando Fabrizio Colella.

Aproveitando a oportunidade de experimento natural criada pelos jogos sem torcida ao longo de 2020, o especialista em economia do esporte mostrou que, sob o silêncio das arquibancadas, o desempenho de atletas negros cresceu, enquanto a qualidade de jogo dos brancos oscilou para baixo.

O estudo não permite determinar por que isso acontece. Ou seja, não é possível atestar que seja o racismo da torcida que, uma vez ausente, permita a evolução do desempenho dos não brancos. Porém dezenas de incidentes racistas no futebol europeu nos últimos anos tornam essa hipótese provável, de acordo com pesquisadores.

Torcedores da Hungria durante partida do país contra a França pela Eurocopa
Torcedores da Hungria durante partida do país contra a França pela Eurocopa - Bernadett Szabo - 19.jun.21/Reuters

Neste mês, foi só começar a Eurocopa, torneio no qual o público já estava de volta aos estádios, para que a Uefa tivesse de abrir uma investigação: em partida da Hungria contra a França, em Budapeste, sons de macacos foram gritados contra a seleção francesa.

"Quando um jogador negro é agredido, mesmo que verbalmente, com ofensas racistas ou gestos, ele não vai estar 100% psicologicamente para ter um bom desempenho em campo. Com os estádios sem torcidas, com certeza essa hipótese tem fundamento", afirma Hilton Vitorino, 43, zagueiro do Montpellier, da França.

Cristiano Barreira, diretor da Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, caracteriza as ofensas no esporte como apelos imorais, que classifica como "internos e externos".

"O interno recorre à desqualificação do atleta nas suas capacidades. O externo recorre a ofensas que não dizem respeito ao esporte, caso do racismo e da homofobia", diz.

Membro da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte, Barreira concorda com a tese de que ofensas racistas têm efeito no rendimento dos atletas. "Se houver algum outro aspecto a ser considerado, ele não vai anular essa hipótese."

Lais Yuri, psicóloga esportiva com atuação em clubes como Palmeiras, Ponte Preta e Sport, diz que uma ofensa racista pode ter um peso profundo. "Além de crime, traz à tona toda uma história de luta, injustiça e preconceito que esse atleta passou e continua a passar e pode desestabilizá-lo emocionalmente."

O mérito do trabalho de Colella foi revelar esse lado mais sombrio da torcida, em vez de avaliar somente o “fator casa”, que leva um time a melhores resultados quando joga com o apoio majoritário dos torcedores.

O próprio pesquisador usou uma ordem de estádios vazios na Argentina para mostrar esse efeito positivo, e, em trabalhos diferentes, na Inglaterra e na Alemanha, o fenômeno foi esmiuçado para mostrar um impacto nas decisões dos juízes.

Mas todas essas pesquisas olhavam para o que acontecia com os times como um todo, os números de gols ou de cartões por partida, o índice de vitórias ou de derrotas. Agora, Colella resolveu investigar o efeito de acordo com as características de cada atleta.

Para isso, usou pontuações de desempenho compiladas para todos os jogadores da Série A italiana em todos os jogos dos últimos anos. As notas são calculadas por um algoritmo do fantasy game Fantacalcio, que se baseia em dados reais de cada atleta em itens como posição no campo, número de passes certos, chutes, dribles e desarmes. A cada partida, usando o mesmo critério, atribui uma nota de 1 a 10.

Colella também comparou imagens de 572 jogadores da principal divisão italiana com uma escala para cor de pele humana desenvolvida pelo dermatologista Thomas Fitzpatrick e os separou em brancos e não brancos. Depois, computou as notas de cada atleta nos 380 jogos, para poder comparar o desempenho nas partidas com e sem torcida.

Os resultados mostraram que jogadores brancos, que obtinham nota média de 5,97 com arquibancadas cheias, recuaram levemente para 5,95 com os estádios fechados. Já os não brancos passaram de 5,92 para 5,98, uma melhora de 1,2%, em grau estatisticamente significativo. Com isso, inverteu-se a relação: não brancos, cuja média era menor sob influência dos torcedores, passaram a ter nota média mais alta na ausência deles.

O pesquisador testou os resultados com outras variáveis, como a nacionalidade dos jogadores, a qualidade das equipes, o “efeito casa” e o momento da partida, mas em todos esses controles a cor da pele continuou sendo relevante para explicar diferenças de desempenho com ou sem torcida. Além disso, o efeito foi maior para os jogadores de pele preta, quando comparados com os pardos.

Colella acredita que, embora a pressão racista aconteça nas divisões principais de vários países da Europa, a consciência do mal que isso provoca é maior entre algumas torcidas, como na Inglaterra, e menor na Itália. “Aumentar a visibilidade desse fenômeno ajuda a educar e é uma forma de reduzir o problema. Apenas punir os clubes ou os torcedores não resolve, porque a agressão se transfere para outros espaços, como as mídias sociais”, diz.

Levantamento recente feito pela Folha, publicado no dia 1º de maio, nas contas de Instagram dos atletas brasileiros que atuam na elite do continente europeu mostra que 23% dos que liberam de forma irrestrita os comentários em suas fotos receberam ao menos uma mensagem racista nesta temporada, iniciada em agosto de 2020.

A pesquisa englobou as cinco principais competições nacionais segundo o coeficiente da Uefa (federação europeia): Alemanha, Espanha, França, Inglaterra e Itália.

O futebol italiano tem adotado um caminho de menos sanções e mais conscientização, segundo Colella. “A questão é quanta ação precisa ser tomada, quanto investimento deve ser feito, porque o fato é que o racismo resiste”, diz ele.

A Liga Série A italiana preferiu não comentar o estudo de Colella, mas afirmou que promove há um ano a campanha Keep Racism Out (deixe o racismo de fora), contra qualquer tipo de discriminação. “Faremos muito mais nessa batalha, na qual estamos comprometidos e muito determinados”, disse a entidade, em nota.

Já Triantafillos Loukarelis, do departamento de oportunidades iguais do Escritório Nacional contra a Discriminação Racial (órgão do governo que participa de campanhas contra racismo no futebol italiano), disse que não tem conhecimento de que a ausência de torcedores tenha aliviado a pressão sobre jogadores não brancos. “Francamente, espero que este não seja o caso”, afirmou.

Apoio

Esta reportagem faz parte de uma série que resultou do programa Laboratórios de Jornalismo de Soluções da Fundación Gabo e da Solutions Journalism Network, com o apoio da Tinker Foundation, instituições que promovem o uso do jornalismo de soluções na América Latina.

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