Líder
Zumbi pecou pelo radicalismo
Da
enviada a Porto Alegre
O
livro ''Palmares - A Guerra dos Escravos'', de Décio
Freitas, ainda é a mais importante pesquisa histórica
já realizada no Brasil sobre o Quilombo de Palmares.
Lançado em 1973, foi o primeiro trabalho capaz de apresentar
dados concretos sobre a identidade do líder negro Zumbi
e a formação social de Palmares.
Décio Freitas, 73, historiador e advogado gaúcho,
um dos principais estudiosos da escravidão no Brasil,
contou à Folha, em sua casa em Porto Alegre, que escreveu
o livro com recursos próprios.
Inicialmente como exilado no Paraguai e depois percorrendo
clandestino arquivos do Brasil, até viajar a Portugal,
onde concluiu a pesquisa em diversos arquivos.
Freitas disse que resolveu estudar Palmares ''para conhecer
o meu país, tentar entender por que o golpe militar
de 64 tinha acontecido. Sentia que precisava ir às
raízes históricas''.
Ele tem hoje uma visão diferente do líder negro
Zumbi. ''Acho que, se ele tivesse sido menos radical e mais
diplomático, como foi seu tio Ganga-Zumba, teria possivelmente
alterado os rumos da escravidão no Brasil.''
Freitas acha que ainda há muito a se descobrir sobre
aquele episódio da história, mas não
é otimista no que se refere à pesquisa arqueológica
que vem sendo realizada na serra da Barriga, Alagoas.
(Marilene Felinto)
Folha
- O sr. estava exilado quando começou a pesquisa sobre
Palmares?
Décio Freitas - É. Fui cassado pelo Ato
Institucional nº 2, logo no início do golpe de
64. Quando o Jango foi derrubado, eu ocupava um cargo de confiança
no governo em Brasília, presidia uma fundação
federal, a Fundação Brasil Central. Fui morar
em Montevidéu naquele ano, e logo que lá cheguei
houve muitas conspirações para que fosse armado
um contragolpe no Brasil. Eu participei dessa negociação.
Nós pretendíamos, ao entrar no Brasil, lançar
um manifesto dividido em duas partes: uma parte histórica,
na qual nós nos apresentaríamos como continuadores
das lutas populares, e a outra parte seria política
e atualizada. Eu era do grupo encarregado dessa primeira parte.
Foi então que, ao fazer a pesquisa para o manifesto,
li pela primeira vez, em Varnhagen (Francisco Adolfo Varnhagen,
1810-1872, historiador brasileiro) algumas linhas sobre Palmares.
Folha
- Por que Palmares?
Freitas - Porque achei intrigante aquilo ali, tratado
como um episódio quase policial por Varnhagen, prontamente
debelado pelas autoridades. Comecei a descobrir coisas na
Biblioteca Nacional de Montevidéu. Em Buenos Aires,
na Biblioteca Nacional, também encontrei muita coisa.
E então vim ao Brasil clandestinamente.
Folha
- Como foi essa viagem?
Freitas - Eu vim de trem até a fronteira, até
Rio Branco, cruzei a ponte para Jaguarão e de lá
vim de ônibus. De carro seria temerário. Primeiro
vim a Porto Alegre, fiquei aqui algum tempo clandestinamente,
trabalhando no Instituto Histórico e Geográfico.
Fui ao Rio de Janeiro, trabalhei na Biblioteca Nacional e
no Arquivo Nacional. Depois, numa segunda vez, fui até
Recife e Maceió. Na volta dessa viagem, comecei a ver
que havia gente nos meus calcanhares. Então me refugiei
na casa de uma senhora suíça, aqui em Porto
Alegre, onde passei dois meses estudando Palmares. Na minha
mesinha de trabalho tinha acima uma foto de Mussolini, porque
essa mulher era fascista, tinha se casado com um italiano
fascista.
Folha
- As principais descobertas de sua pesquisa foram feitas em
Portugal?
Freitas - Exato. Em 1976, decidi ir a Portugal e fiquei
seis meses pesquisando lá, por minha conta. Trabalhei
muito, no Arquivo Histórico Ultramarino, no Arquivo
da Torre do Tombo, na Biblioteca da Ajuda e no Arquivo e Biblioteca
Distrital de Évora. Um pouco em Coimbra também.
O problema dos arquivos portugueses é que eles não
tinham nem sequer catálogo. Eu tinha que procurar caixa
por caixa, maço por maço, apenas tendo em conta
a época. Um trabalho extremamente sacrificado porque
eu não era paleógrafo, e a linguagem do século
17 é de leitura muito difícil. Não havia
xerox. Tive que recorrer a um fotógrafo para fotocopiar
os documentos. Na volta, eu tornei a trabalhar no assunto
e acrescentei muita coisa.
Folha
- O sr. tinha consciência de que estava realizando um
trabalho pioneiro sobre o tema?
Freitas - Olha, os melhores textos que eu encontrei
na época sobre Palmares foram o do Edison Carneiro,
''O Quilombo dos Palmares'', e um ensaio de um escritor surrealista
francês chamado Benjamin Peret. O ensaio dele dizia
que os documentos portugueses falavam em vários Zumbis.
Mas ele achava que havia qualquer coisa de falso naquela afirmação.
Foi ele quem estabeleceu a data de 20 de novembro para a morte
de quem ele supunha ser um dos muitos Zumbis. O Edison Carneiro
retomou essa data depois. É isso que havia de mais
desenvolvido sobre Palmares.
Folha
- Qual foi a maior contribuição de sua pesquisa?
Freitas - Bem, com relação a Zumbi especificamente,
acho que foram as cartas do padre Antonio Melo, que criou
Zumbi até os 15 anos. Mas eu encontrei, por exemplo,
indicações da existência de Palmares em
documentos do início do século 17, e não
apenas depois da ocupação holandesa ou durante
ela. E vi que foi um dos mais importantes problemas da colonização
portuguesa no século 17. Do ponto de vista bélico,
foi o mais importante. Eles empregaram mais força contra
Palmares do que na guerra contra os holandeses. Quanto a Zumbi,
todo mundo ainda se referia a ele como sendo o titular de
um cargo ou posto militar. E por isso teria havido tantos
Zumbis. Eu efetivamente entendia que não. Até
que um dia, por mero acaso _e a pesquisa histórica
depende muito de sorte também e do acaso_, eu encontrei
uma consulta do Conselho Ultramarino, órgão
de assessoria ao rei, em que se dizia ao rei que todas as
certidões que diziam ter sido morto um Zumbi eram falsas,
forjadas para que os chefes das expedições recebessem
as mercês do rei. Verificou-se que Zumbi continuava
vivo. Este foi o ponto de partida para estabelecer a identidade
de Zumbi. Até que encontrei as cartas do padre Antonio
Melo.
Folha
- O que o sr. acha da pesquisa arqueológica que vem
sendo desenvolvida na serra da Barriga por arqueólogos
e historiadores brasileiros e americanos?
Freitas - Eu vi que vocês da Folha publicaram
isso. Eu acho que o que eles conseguiram até agora
é muito precário para chegar a afirmações
tão categóricas como, por exemplo, dizer que
a presença indígena era muito grande em Palmares.
É claro que havia indígenas entre eles. Mas
os negros, sobretudo os de Palmares, não confiavam
nos índios. Em todas as expedições contra
Palmares, o mais forte contingente era de índios. Eles
estavam aliados aos portugueses.
Folha
- Mas o sr. acha possível encontrar, por meio da arqueologia,
resquícios do quilombo?
Freitas - Eu não tenho muita fé nisso,
porque Palmares era um tipo de sociedade muito precária,
em termos materiais. Eles usaram pedras nas fortificações
do Macaco, mas o restante eram mocambos de madeira. Então,
eu não vejo possibilidade de novas descobertas por
meio de escavações.
Leia
mais: Brasil
não cuida dos documentos
|