Idílio
racial e despotismo em Gilberto Freyre
RICARDO
BENZAQUEN DE ARAÚJO
Especial para a Folha
Uma
indagação acerca do papel desempenhado pela
figura do negro na obra de Gilberto Freyre provavelmente receberia,
até há pouco tempo, uma resposta dupla e rápida.
Por um lado, ele seria quase com certeza elogiado por ter
se constituído no primeiro intelectual brasileiro a
tratar essa figura através da idéia de cultura
e não da de raça, o que lhe permitiria recuperar
de forma positiva as contribuições de diferentes
comunidades de origem africana para a formação
da nossa identidade nacional.
Por outro, contudo, não se deixaria de registrar que
esse mesmo impulso relativista o teria levado a criar uma
imagem singularmente harmônica e integrada da nossa
sociedade colonial, ocultando a exploração e
o conflito inerentes à escravidão atrás
de uma fantasiosa "democracia racial".
Creio que esses dois pontos resumem o que se poderia chamar
de "sabedoria convencional" sobre Freyre. Entretanto,
embora não pretenda refutá-los inteiramente,
tenho a impressão de que já seja possível
levantar argumentos que, ao menos no tocante aos livros que
ele publicou nos anos 30 como "Casa Grande &
Senzala" (1933), talvez possam tornar essa discussão
mais complexa e matizada.
O próprio abandono da noção de raça
em "Casa Grande & Senzala" está longe
de ser uma questão completamente resolvida, pois basta
uma leitura superficial do texto para que se perceba que Gilberto
Freyre continua a empregá-la. Tal percepção,
todavia, não o converte em mero repetidor das posições
racistas da época, posições que, sempre
encarando o Brasil pelo ângulo da miscigenação,
ou o condenavam à mais absoluta decadência ou
faziam com que as suas chances de desenvolvimento dependessem
da total erradicação da nossa herança
negra.
Freyre, ao contrário, irá lidar com a questão
de maneira muito diversa: baseando-se em uma suposta aptidão
dos seres humanos para se adaptar às condições
ambientais, aptidão que importava inclusive na capacidade
de incorporar, transmitir e herdar características
adquiridas na interação com o meio, ele acaba
por trabalhar com uma concepção neolamarckiana
de raça, concepção que julgava que aspectos
biológicos e culturais dos povos eram profundamente
marcados pela relação com o clima e o relevo
da sua região de origem.
Teríamos, então, o que se denominava de raças
"históricas" ou "artificiais",
categorias cuja utilização não implicava
necessariamente contradição com o conceito de
cultura. Afinal, nada obrigava a que diferenças atmosféricas
pudessem fundar uma escala de valores em que alguns povos
fossem privilegiados e outros rebaixados ou excluídos.
Abria-se na Colônia, portanto, o palco para uma peculiar
e para Freyre essencialmente positiva experiência
social, onde, bem distante do predomínio de uma única
regra ou civilização, diferentes raças
e culturas influenciavam-se mutuamente. E, o que é
particularmente relevante, sem que cada uma perdesse inteiramente
sua identidade, o que aponta para uma totalidade extremamente
precária, sincrética e instável, em que
a busca do equilíbrio nunca envolve a completa anulação
dos antagonismos culturais.
Ora, basta recordarmos a enorme importância que a idéia
de região terá no pensamento de Freyre, além
da evidente complexidade apresentada tanto por aquela relativa
conciliação entre os conceitos de cultura e
de raça quanto por essa plástica e heterogênea
visão do nosso passado colonial, para que fique suficientemente
claro o interesse que o exame desses temas pode despertar.
Não cessam aqui, porém, as possibilidades levantadas
por uma revisão daquela "sabedoria convencional"
acerca do nosso autor: também no que diz respeito ao
caráter idílico e consequentemente mistificador
da sua análise da escravidão colonial, podem-se
sugerir algumas alternativas no sentido de uma reabertura
da discussão.
Ainda
que não pairem dúvidas sobre a ênfase
conferida por Gilberto à formação de
vínculos bastante estreitos entre senhores e escravos,
vínculos responsáveis até por uma certa
"colonização" do português pelo
negro, é indispensável também reconhecer
que ele nunca deixa de destacar o ambiente violento e despótico
que cercava estes vínculos.
Na verdade, este ambiente é realçado e detalhado
a tal ponto, concretizando-se em torturas, estupros, mutilações
e sobretudo na cotidiana redução
da vontade do cativo à do seu mestre, que não
podemos deixar de nos perguntar sobre o efetivo significado
de uma sociedade assim dividida entre o despotismo e a confraternização,
entre a exploração e a intimidade.
Mas é justamente no tratamento de questões deste
tipo que aquela imagem de uma totalidade instável e
heterogênea, recém-mencionada, parece oferecer
a sua mais valiosa contribuição.
De fato, enfrentando uma situação na qual grupos
sociais absolutamente antagônicos aproximam-se decisivamente,
sem que isto diminua o seu conflito ou anule as suas diversidades
culturais, Freyre termina por adotar, como ele próprio
dizia, uma acepção eminentemente anárquica
do conceito de sociedade.
Provavelmente estimulada pelo seu diálogo com as correntes
modernistas, no país e no exterior, esta acepção
não vai deixar de recorrer às idéias
de ordem, consistência e solidariedade, mas nunca de
forma dogmática, rotineira ou sistemática, mostrando-se,
por isto mesmo, particularmente sugestiva para uma experiência
tão ambígua e repleta de contrastes quanto a
brasileira.
RICARDO
BENZAQUEN DE ARAÚJO é professor do Instituto
Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro
e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ),
autor de "Guerra e Paz - Casa Grande e Senzala e a Obra
de Gilberto Freire nos Anos 30" (editora 34)
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