Obá
2º, amigo de Pedro 2º, atacou o racismo e defendeu
igualdade
Um
príncipe negro nas ruas do Rio
EDUARDO SILVA
Especial para a Folha
Dom Obá 2º d'África, ou melhor, Cândido
da Fonseca Galvão, como foi batizado, nasceu na Vila
dos Lençóis, no sertão da Bahia, por
volta de 1845.
Filho de africanos forros, brasileiro de primeira geração,
era, ao mesmo tempo, por direito de sangue, príncipe
africano, neto, ao que tudo indica, do poderoso Aláàfin
Abiodun, o último soberano a manter unido o grande
império de Oyo na segunda metade do século 18.
Príncipe guerreiro, Dom Obá (que quer dizer
"rei" em ioruba) lutou na Guerra do Paraguai (1865-70),
de onde saiu oficial honorário do Exército brasileiro,
por bravura. De volta ao país, fixou residência
no Rio, onde sua posição social era, no mínimo,
complexa. Tido pela sociedade de bem como um homem meio amalucado,
uma figura folclórica, era, ao mesmo tempo, reverenciado
como um príncipe real por escravos, libertos e homens
livres de cor.
Amigo pessoal, uma espécie de protegido de Dom Pedro
2º, Dom Obá assumiu, nos momentos decisivos do
processo de abolição progressiva, o papel histórico,
até então insuspeito, de elo entre as altas
esferas do poder imperial e as massas populares que emergiam
das relações escravistas.
Sua figura imponente de homem de 2m de altura, seus modos
de soberano, como que captavam a atenção dos
contemporâneos, embora poucos estivessem realmente preparados
para acreditar no que viam. Um príncipe afro-baiano
a perambular pelas ruas do velho Rio, barba à moda
de Henrique 4º, muito bem vestido em suas "finas
roupas pretas", como foi descrito, de fraque, cartola,
luvas brancas, guarda-chuva, bengala e pince-nez de aro de
ouro.
Ou, em ocasiões mais especiais, muito ereto e importante
em seu bem preservado uniforme de alferes do Exército,
com seus galões e dragonas douradas, sua espada à
cinta, seu chapéu armado com penachos coloridos, seu
"pacholismo admirável".
Dom Obá, para ser breve, defendeu uma visão
alternativa da sociedade e do próprio processo histórico
brasileiro. Talvez pelo conteúdo mesmo de suas idéias,
talvez por sua linguagem crioula, colorida com expressivas
pitadas de ioruba e mesmo latim, a verdade é que seu
discurso parecia opaco, incompreensível para a elite
letrada de então.
Escravos, libertos e homens livres de cor, contudo, não
apenas compartilhavam suas idéias, como contribuíam
financeiramente para a publicação das mesmas
e reuniam-se "nas quitandas ou em família"
para ler os artigos.
O que defendia este homem e por que parecia interessar tanto
seus leitores? Sendo um príncipe, era Dom Obá,
ao menos teoricamente, um monarquista acima dos partidos,
nem inteiramente conservador nem liberal, talvez por achá-los
muito parecidos uns com os outros, inspirados apenas por interesses
materiais e casuísticos.
Por essas e outras, tinha o príncipe posições
políticas muito bem matizadas. "Por isso sou conservador
para conservar o que for bom e liberal para reprimir os assassinatos
que têm havido nesta atualidade a mando de certos potentosos",
quer dizer, potentados, pessoas muito influentes e poderosas.
O combate ao racismo, a defesa da igualdade fundamental entre
os homens, foi um dos pontos mais importantes do pensamento
e da prática, explicava, "por Deus mandar que
quando o varão tiver valor não se olharia a
cor". Contrariava não apenas concepções
senhoriais, contrariava a própria ciência fin
de siècle com suas poderosas filosofias evolucionistas
e etnocêntricas.
A miscigenação brasileira, para o príncipe,
nada tinha a ver com idéias evolucionistas de inevitabilidade,
como pensou Nina Rodrigues; ou desejabilidade, como pensou
Silvio Romero, do "branqueamento". Tinha a ver,
ao contrário, com um sentimento de igualdade fundamental
entre os homens. O príncipe orgulhava-se de "preto
ser" e, por não acreditar em superioridades, era
"amigo dos Brancos e (de) todos os varões sensatos
conhecedores (...) que o valor não está na cor".
Saída do mesmo universo cultural, uma carta de apoio
ao príncipe lembra o absurdo da discriminação,
"visto da preta cor ser assemelhada todas as mais raças".
Outra carta, em 1887, chega a formular um projeto de "enegrecimento",
antes que de "embranquecimento" da nação.
Para o missivista, súdito de Dom Obá, a raça
negra já não era o problema, mas a própria
solução. Por isso apoiava a nomeação
do príncipe como embaixador plenipotenciário
na África ocidental, onde prestaria relevantes serviços,
"mandando transportar colonos africanos, para nunca mais
sofrer o Brasil decadência na sua exportação
de fumo e café (...) e o açúcar e o algodão
nunca deixem de fertilizar o solo onde nascera o mesmo Príncipe
Obá 2º d'África, de Abiodon neto".
Também aqui a discriminação é
tida por absurda, sendo, afinal, "cada qual como Deus
o fez".
O próprio príncipe publica, vez por outra, poesia
abolicionista e antidiscriminatória. "Não
é defeito preto ser a cor/ É triste pela inveja
roubar-se o valor", reza uma delas. Para ele, "o
certo é que o Brasil deve desistir (da) questão
da cor, pois que a questão é de valor e quando
o varão tiver valor não se olhará a cor".
Na verdade, para Dom Obá, não parece existir
exatamente uma "questão racial", mas uma
questão de cultura, de informação, de
refinamento social. Daí, muitas vezes, o seu desconsolo
com a pátria amada, "um país tão
novo onde completamente não reina a severa civilização
colimada, porque ainda há quem apure a tolice (...)
do preconceito de cor".
O príncipe, como seus seguidores, chega a formulações
pioneiras também no sentido da criação
de uma estética autônoma, na linha do black is
beautiful norte-americano dos anos 60. Na verdade, segundo
um de seus súditos, a raça negra não
apenas era linda, era "superior do que os mais finos
brilhantes".
Às vezes parece existir, no fundo, a idéia de
superioridade negra. Não no sentido biológico
ou intelectual, parece, mas no sentido moral, em função
da vivência histórica de diáspora. Sua
"humilde cor preta" era, assim, "cada qual
como Deus e Maria Santíssima, virgem, sempre virgem
sem ser pesada aos cofres públicos, sem ser assassina
da humanidade". Tudo isso, concluía, "por
preta ser a cor invejada".
EDUARDO
SILVA é chefe do setor de história da Fundação
Casa de Rui Barbosa e autor de "Prince of the People
- The Life and Times of a Brazilian Free Man of Colour",
editora Verso (Londres)
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racial e despotismo em Gilberto Freyre
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