Assimilação
marginal ao mundo do trabalho livre
MARIA
ARMINDA ARRUDA
Especial para a Folha
"A Integração do Negro na Sociedade de
Classes", de Florestan Fernandes, publicada em 1965 e,
originariamente, sua tese de cátedra em sociologia,
representa um momento de viragem nas análises sobre
a questão racial no Brasil, além de ser obra
importante no interior da produção intelectual
do autor. Expressa, ao mesmo tempo, a persistência do
seu interesse no tema das relações interétnicas,
já demonstrado na pesquisa "Brancos e Negros em
São Paulo", realizada em colaboração
com Roger Bastide.
Situando a problemática na transição
"da ordem social escravocrata e senhorial" para
o "desenvolvimento posterior do capitalismo", o
sociólogo constrói uma forma particular de tratar
o assunto, evidenciando a condição de marginalidade
dos negros e dos mulatos.
Ao eleger a cidade de São Paulo como universo empírico
privilegiado, realça-se uma situação
paradigmática de exclusão social dos negros,
por tratar-se do "primeiro centro urbano especialmente
burguês", regido por mentalidade mercantil, iniciativa
individual e liberalismo econômico, ingredientes que
respaldavam o progresso encetado no período em questão.
Nesse quadro, a obra analisa os impasses vivenciados por negros
e mulatos no esforço de inserção na nova
ordem social, pontuada pelo "estilo de vida individualista
e competitivo", construído pelo "novo regime
de relações de produção".
O problema racial, focalizado no prisma da dinâmica
global de modernização da sociedade brasileira,
evidente em São Paulo, revela a natureza do recorte
temático escolhido.
A rápida transformação ocorrida na cidade
de São Paulo, entre o fim do século 19 e o começo
do 20, teria impossibilitado, segundo o estudo, a inserção
do negro e do mulato no estilo urbano de vida. Ou, nos termos
do autor, a heteronomia presente na "situação
de castas", típica da condição escrava,
impediu aos ex-escravos a assimilação das potencialidades
presentes na "situação de classes".
Profundos desajustamentos resultaram desse processo, respondendo
pela desorganização de negros e mulatos no novo
contexto social. A extinção da escravatura não
promoveu a reintegração dos egressos, relegando-os
ao seu próprio destino, desterrados para as sombras
da sociedade que se modernizava.
Paralelamente a esse posicionamento social ambíguo
ao qual eram empurrados, desenhavam-se os contornos do Brasil
moderno e as direções que se pretendiam imprimir
na sociedade de classes.
Ressocialização
O estatuto de pessoas juridicamente livres não significou,
portanto, mudança substancial na condição
de excluídos dos antigos escravos, impedindo-os de
alçarem-se categoria de cidadãos que, de resto,
era o apanágio dos dominantes.
Ausentes a democratização efetiva e os direitos
e deveres fundamentais dos indivíduos no plano concreto,
a realidade instaurada alijou o negro do mercado de trabalho
e da "ordem social competitiva", corroendo os fundamentos
jurídicos e morais das relações contratuais,
acirradíssimas em São Paulo pela competição
desigual com o imigrante europeu.
O segundo capítulo da obra ilustra, contundentemente,
a trajetória percorrida pelos negros no momento crucial
da transformação urbana. Marcados pela pauperização
e desorganização, "viveram dentro da cidade,
mas não progrediram com ela e através dela",
por não dominarem as regras intrínsecas da sociedade
em emergência.
A ressocialização exigida pela realidade urbana
e industrial requeria o afastamento dos fundamentos do passado,
impossível de se efetivar naquele contexto, cerceando
a construção de nova identidade, que exigia
requisitos de outra natureza. Os afro-brasileiros reiteraram
um padrão de comportamento pontuado por "tradicionalismo
tosco e inoperante", deixando entrever os impasses dos
ajustamentos e acomodações oriundos da antiga
vivência.
Nesse compasso, o andamento da reflexão destaca o período
de 1880 a 1960, assinalado pela ruptura da escravidão
e pelo advento da ordem social competitiva, que possibilitou
a reavaliação das formas de reabsorção
do negro no âmbito do desenvolvimento industrial. Em
todas as etapas, a problemática da marginalização
tece o fio condutor da análise e o autor localiza e
expande a compreensão do preconceito e da discriminação
racial, originários da preservação das
formas sociais arcaicas.
O ritmo da história em São Paulo criou forte
descompasso entre a ordem social (mais sincronizada com as
alterações econômicas) e a ordem racial
(de ajustamento mais lento às mudanças). O atraso
da última é sintomático da ausência
de democracia racial e a desmontagem do que Florestan Fernandes
denomina por "mito" é passagem eloquente
que arremata parte dos seus pontos de vista.
Fidelidade
do olhar
Por tudo isso, "A Integração do Negro"
é obra de clivagem no âmbito dos estudos sobre
as relações raciais. A problemática dos
negros, inaugurada no final dos 800, vincada pelas teses raciais
e mesmo racistas, encontra-se presa ao evolucionismo e ao
darwinismo social, cujo autor mais representativo foi Nina
Rodrigues.
Em "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre,
a questão racial é focalizada no prisma do culturalismo,
deslocando a orientação haurida na sociobiologia,
criando-se um novo cânon interpretativo. Esse livro,
ao romper com as vertentes dominantes, renovou os estudos
sobre o tema, mas solidificou, em contraface, o chamado mito
da democracia racial ao inserir no mesmo amálgama,
e de modo equivalente, as diversas
"contribuições" da nossa cultura.
Florestan Fernandes, quando rediscute o problema, imprime
nova inflexão e redireciona os estudos na área.
Os próprios trabalhos de Fernando Henrique Cardoso
"Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional"
e de Octávio Ianni "As Metamorfoses do Escravo",
apesar de terem sido escritos anteriormente, foram, em larga
medida, tributários das investigações
de Florestan sobre os impactos da escravidão na constituição
da sociedade
brasileira.
A reinterpretação do sociólogo paulista
manifesta um ponto de vista que percorre praticamente toda
sua obra. Desde seus primeiros estudos sobre o folclore, passando
pela análise dos índios e dos negros cujo coroamento
ocorre em "A Revolução Burguesa no Brasil",
o autor tematiza a sociedade brasileira na perspectiva da
exclusão e da impossibilidade de se eliminarem os traços
sociais do passado que se encontram mesclados às novas
realidades, embaraçando a plena realização
da ordem social competitiva.
Possivelmente convivem nessas inquietações elementos
da sua própria biografia e que, talvez, possam iluminar
a fidelidade do olhar de Florestan, construído na vivência
das camadas populares.
Muito das suas posições políticas prende-se
a essa visão original da sociedade brasileira. No conjunto,
a obra de Florestan Fernandes é indispensável
para a compreensão da nossa modernidade.
"A Integração do Negro na Sociedade de
Classes" é texto imprescindível na fixação
de uma imagem não conservadora sobre os negros e no
andamento de sua reflexão arguta sobre o Brasil.
MARIA
ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA é professora do departamento
de sociologia da USP e autora de "Mitologia da Mineiridade"
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