Um
viajante tropicalista pelas terras d'além mar
OMAR
RIBEIRO THOMAZ
Especial para a Folha
Entre
1951 e 1952, Gilberto Freyre realiza uma viagem a Portugal
e às suas colônias no continente africano e na
Índia. Em cada "província", do Portugal
metropolitano ou d'além-mar, profere discursos e conferências,
sempre exaltando as características peculiares da colonização
lusitana.
Reunidos em livro, seus discursos e conferências vieram
a compor a forma mais acabada do que o próprio Freyre
denominou "luso-tropicalismo", interpretação
totalizante e funcional da presença portuguesa em territórios
tropicais que, a partir dos anos 50, tornou-se moeda corrente
entre os que legitimavam a continuidade do poder colonial
português.
O luso-tropicalismo começa a tomar corpo na obra de
Freyre a partir do final dos anos 30. Podemos, no entanto,
antever elementos do luso-tropicalismo já em um dos
seus grandes clássicos, "Sobrados e Mocambos",
quando, ao lado de uma rica descrição das mudanças
pelas quais passa a sociedade brasileira em função
do processo de urbanização e modernização,
ele observa elementos que tendem a repor o universo de relações
entre brancos e negros que teria caracterizado o Brasil da
casa grande e da senzala. Começa, então, um
processo que desembocará na universalização
de uma teoria que, inicialmente, teria como alcance restrito
o Pernambuco dos primórdios da colonização.
Ao longo da viagem que realiza a "terras portuguesas",
Freyre apenas confirma o que previra anteriormente: nas colônias
africanas encontra brasis em gestação; em Goa,
uma sociedade simbiótica que, como o Brasil, teria
promovido o encontro entre raças, religiões
e culturas. Em todo o "mundo português" na
Guiné ou em Macau, na Índia ou no Timor
se repetiria o milagre do Brasil: um mundo onde as distâncias
não seriam intransponíveis e onde, sempre sob
a égide de um cristianismo lírico e se expressando
na língua portuguesa enriquecida com sotaques
e vocábulos nativos, surgiriam sociedades sincréticas
portadoras de uma identidade comum.
As relações cordiais entre os colonos e os nativos,
entre brancos e negros que Freyre encontra na sua viagem
seriam a prova de que, em qualquer espaço ou tempo,
haveria "constantes portuguesas de caráter e de
ação".
Na África do século 20 teríamos, como
no Brasil, uma nova criação portuguesa nos trópicos.
Podemos imaginar o impacto da fala do já internacionalmente
conhecido sociólogo de uma ex-colônia de Portugal.
Salazar e seus entusiastas passaram a solicitar nos fóruns
internacionais mais 400 anos para que pudessem terminar aquilo
a que haviam dado início: a construção
de novos brasis.
Embora a singularidade da colonização portuguesa
fosse uma noção há muito reivindicada
por políticos e intelectuais, seria equivocado afirmar
que, antes dos anos 50, haveria um consenso de que na África
os portugueses tratavam de repetir o processo observado no
Brasil.
Tal noção aparece timidamente na fala de diversos
intelectuais portugueses nos congressos coloniais das décadas
de 30 e 40, mas predomina a idéia de que nas colônias,
sobretudo africanas, relações igualitárias
não poderiam ser estabelecidas com as populações
nativas, porque estas seriam inferiores. Em todo o caso, as
relações poderiam vir a se estabelecer no futuro.
Caberia, no entanto, à raça branca, a posição
de mando.
As publicações de propaganda que proliferaram
nas primeiras décadas do salazarismo veiculavam, sobretudo,
imagens dos povos exóticos do Império: na sua
diferença residia a glória de Portugal e a legitimidade
do Império Colonial. A sua lusitanidade era uma promessa,
que apenas o universalismo português podia prever.
A partir dos anos 50, publicações oficiais passaram
a reproduzir fotos onde vemos brancos e negros convivendo
fraternalmente em escolas, restaurantes e hospitais. O exotismo
dos costumes africanos transforma-se em folclore regional
que apenas engrandeceria a grei. Tratavam-se, afinal, de autênticos
portugueses.
O luso-tropicalismo de Gilberto Freyre procurava, enfim, superar
dilemas e contradições que acompanharam a formação
dos grandes impérios coloniais. Curioso paradoxo: a
intelectualidade brasileira, sempre acossada pelo "mal-estar
da cópia", passava a exportar uma teoria e um
modelo de relações raciais que viria a alimentar
um império agonizante, um regime autoritário
e uma guerra cruel.
OMAR
RIBEIRO THOMAZ é doutorando em Antropologia Social
na USP e assistente de pesquisa do Centro Brasileiro de Análise
e Planejamento
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