Milhares
de documentos aguardam catalogação
AURELIANO
BIANCARELLI
Enviado especial a Lisboa
JAIR RATTNER
Especial para a Folha, de Lisboa
Há pontos em comum entre a caçada
que se promoveu a Zumbi e a insana busca por documentos nos
arquivos portugueses. Por quase nada possuírem, além
de pés calejados e conhecimento das matas, os negros
desapareciam a cada vez que as tropas se aproximavam.
Nos museus portugueses, os traços dessa guerra desapareceram
por conta da escassez de relatos e pela desordem dos arquivos.
A Torre do Tombo, o mais importante acervo do país,
tem inúmeros catálogos diferentes. O principal,
os ''Manuscritos da Livraria'', não traz os documentos
por ordem alfabética. Obedece a cronologia de entrada
no acervo. Milhares de documentos das antigas casas de nobres
ainda não foram catalogados.
Não se pode confiar no que já foi informatizado.
Segundo o computador, a carta do rei que dá a patente
de mestre de campo a Domingos Jorge Velho deveria estar na
folha 426 do códice nove do ''Registro Geral das Mercês''.
Foi encontrada pela Folha no verso da folha 246.
A maioria dos documentos sobre Palmares pertence ao Arquivo
Histórico Ultramarino. Ali estão as cópias
dos papéis que seguiam às colônias. Muitos
dos originais, destinados às capitanias do Brasil,
desapareceram no tempo.
Os documentos pouco ou nada contribuíram para traçar
o perfil do homem Zumbi. Uma única carta indica que
ele teria sido criado pelo padre Antonio Melo e que se tornara
coroinha antes de fugir para Palmares com 15 anos. Aos 10,
já tinha aprendido português e latim. Sabe-se,
com certeza, que Zumbi teve pelo menos uma mulher. Uma carta
de Miguel de Godoy de Vasconcellos relata a prisão
daquela que seria sua principal companheira.
''Na outra avançada que se deu a um troço (corpo
de tropas) do negro Zumbi, intitulado governador dos negros,
em que foi por cabo de 56 homens, obrando com tanta satisfação
que aprisionaram 40 pessoas em que entrou a mulher principal
do mesmo Zumbi.'' (1)
Uma consulta do Conselho Histórico Ultramarino de maio
de 1698 confirma a prisão de uma suposta mulher de
Zumbi, que o líder teria raptado e com quem teria tido
filhos. O documento, que está no Arquivo Histórico
Ultramarino, diz o seguinte: ''... quanto a Maria Paim, mulher
branca que nomeava e tratava o dito Zumbi como seu marido
e pai de seu filhos, deve-se entender que foi forçada,
visto que levada contra a vontade de seu tutor, e assim
não deve sofrer punição''. (2)
Uma informação contundente, mas questionada
pelos historiadores, aparece na mesma consulta do Conselho
Ultramarino sobre os vários candidatos ao posto de
sargento-mor do terço dos Palmares. Nela, o mulato
Antonio Soares, que levou as tropas até onde Zumbi
foi achado e morto, na serra Dois Irmãos, aparece como
genro do próprio rei dos Palmares.
Os historiadores alertam para o lado fantasioso dos documentos
enviados ao rei. Este mesmo Rodrigues da Silva inclui em seu
currículo uma investida a Palmares em que teria feito
''400 prisioneiros''.
Dos quatro candidatos a sargento-mor, três afirmam ter
participado da morte de Zumbi, enviando depois sua cabeça
ao governador de Pernambuco, que a expôs em praça
pública, espetada numa vara.
Um único documento faz referência a uma fala
atribuída ao próprio Zumbi. Ao raiar a manhã
de 4 de fevereiro de 1694, Zumbi constatara que os soldados
tinham levantado durante a noite uma cerca em diagonal àquela
que protegia a fortaleza dos Macacos, onde se entrincheiravam
os negros.
Desta forma, Palmares poderia ser atacada pelo lado menos
protegido, e os negros seriam empurrados para o despenhadeiro.
''E tu deixaste fazer esta cerca aos brancos?'', teria perguntado
Zumbi ao sentinela. ''Amanhã seremos entrados e mortos,
e nossas mulheres e filhos cativos.'' (3)
Zumbi foi profético. Palmares foi destruída
naquele ataque e seu chefe fugiu para morrer a 20 de novembro
do ano seguinte.
NOTAS
1. O documento original, de 1709, se encontra na caixa 12
do Arquivo Histórico Ultramarino; foi transcrito do
acervo da Universidade Federal de Pernambuco levantado pelo
historiador José Antonio Gonçalves de Mello
2. Documento transcrito pelo historiador Décio Freitas
3. Manuscrito transcrito por Ernesto Ennes em seu livro ''As
Guerras Nos Palmares'', Companhia Editora Nacional, 1938;
Ennes foi ''conservador'' do Arquivo Histórico Colonial
e bibliotecário-chefe da Seção Ultramarina
da Biblioteca Nacional de Lisboa
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