O herói eleito


Para historiadores, Zumbi ofuscou Ganga-Zumba

Da enviada a Salvador


Novas interpretações da história do Quilombo dos Palmares serão apresentadas em alguns dos ensaios do livro ''História do Quilombo no Brasil'', a ser lançado nos próximos meses pela Companhia das Letras.

Trata-se de uma coletânea de 17 textos sobre quilombos brasileiros, de autores nacionais e estrangeiros, incluindo os organizadores João José Reis, 43, professor de história da Universidade Federal da Bahia, e Flávio dos Santos Gomes, 31, professor da Universidade Federal do Pará.

Cinco dos ensaios são sobre Palmares (leia lista abaixo). Segundo Reis, são ''reinterpretações importantes da história do quilombo''. Os organizadores acham que ''é preciso rever Palmares à luz de novas perspectivas'' e que os documentos já descobertos são suficientes para se escrever a história do quilombo.

A Folha conversou com Reis e Gomes em Salvador, depois de uma palestra deste sobre quilombos, no Arquivo Público da Bahia, em outubro.

Ambos são da opinião de que é preciso rever o papel histórico de Ganga-Zumba e o tratado de paz por ele proposto aos portugueses, em 1678, muito semelhante a acordos celebrados entre escravos negros de outros países da América que conseguiram liberdade na mesma época.

''Ganga-Zumba é diminuído em função de uma historiografia do heroísmo'', afirma João José Reis, referindo-se ao fato de ter sido necessária a criação do herói Zumbi. Já Flávio Gomes é da opinião de que ''as pesquisas que existem hoje sobre Palmares são limitadas na perspectiva de análise e não nas informações''.

Gomes desenvolve pesquisa sobre quilombos do Rio de Janeiro, do Pará e da Bahia. No momento ele organiza uma edição com coletânea de 200 documentos sobre Palmares, já publicados em revistas de arquivos e institutos históricos de difícil acesso.
(MARILENE FELINTO)

Folha - O sr. disse que falta à historiografia brasileira rever a história de Palmares à luz de novas teorias. Quais?
Flávio Gomes - Os trabalhos clássicos sobre Palmares como, entre outros, os de Edison Carneiro e Décio Freitas, são importantes, mas foram escritos num determinado momento da história.
O último grande trabalho sobre Zumbi, o de Décio Freitas, foi feito em plena ditadura militar, quando se tinha uma recuperação da história de Zumbi como porta de entrada dos negros para uma certa história dos vencidos. Como é que o negro entra na chamada história dos vencidos, em que estava incluída toda a população brasileira? Com o Quilombo de Palmares.
Hoje você tem um debate mais rico na historiografia brasileira sobre escravidão. O que é necessário é ''revisitar'' Palmares à luz de novas perspectivas.

Folha - Que perspectivas?
Gomes - Por exemplo, as relações que os quilombos mantinham com o restante da sociedade escravista aparece de forma muito subliminar no trabalho desses historiadores. Ninguém sabe qual era o impacto da população de Palmares nas populações vizinhas, o que inclui várias questões sobre família, demografia, tráfico, religião etc. Qual o impacto que Palmares teve sobre a escravidão nas Américas? Isso é muito importante.
Outra coisa que eu acho que merece ser analisada é o papel de Ganga-Zumba. Ganza-Zumba tem um tratado de 1678 que foi muito banalizado pela historiografia em função, inclusive, de se ter que eleger Zumbi como herói, um mito para a história.

Folha - O sr. diria que o papel de Zumbi é supervalorizado?
Gomes - Não, eu não acho que há supervalorização. Na verdade, quem elegeu Zumbi como herói foi a historiografia. Agora, é claro que o movimento negro resgata isso para seu interesse.
É preciso acrescentar também, conforme diz em seu livro Ivan Alves Filho (''Memorial de Palmares''), que Zumbi tentou participar de duas tentativas de acordo de paz, já depois da morte de Ganga-Zumba, que não funcionaram. Então, é preciso analisar a situação em que Zumbi se encontrava. Só acho que várias outras questões também devem ser analisadas.
Trabalhar com Ganga-Zumba hoje é recuperar até um rei palmarino que tentou estabelecer um tratado de paz. Em várias outras regiões da América, destacadamente Suriname e Jamaica, houve tratados de paz que funcionaram.
João José Reis - Quero dizer que, é claro, todo herói tem que ser superdimensionado, ou não seria herói. Então, Zumbi não foge ao modelo. Mas nós não sabemos se, caso ele tivesse seguido a mesma estratégia conciliatória, Palmares teria sobrevivido.
O que Ganga-Zumba tentou foi feito em outros lugares da América e deu certo, no sentido de que grupos de quilombolas conseguiram a liberdade e sobrevivem até hoje com sua identidade própria.
É o caso dos Saramaca do Suriname. O conteúdo desses tratados é muito semelhante ao tratado do Ganga-Zumba, que já falava em concessões de terra, permissões de comércio etc.

Folha - Vocês acham que falta muito a ser descoberto sobre Palmares?
Gomes - Não. Eu não concordo com essa idéia de que, por falta de documentos, não se sabe a história de Palmares. Os documentos existem, são acessíveis, muitos deles estão transcritos, ou aqui, ou na Holanda e em Portugal.
O que falta é interesse. Você pode escrever a história sem dispor de todos os documentos. Não vai aparecer esse documento que possa revelar ou alterar tudo. Isso não existe.


O LIVRO

Conheça, a seguir, os ensaios sobre Palmares que farão parte de ''História do Quilombo no Brasil'':

1. ''A Arqueologia de Palmares e Sua Contribuição Para o Conhecimento da História da Cultura Afro-Americana'', de Pedro Paulo Funari (Universidade de Campinas)
2. ''Deus Contra Palmares: Representações Senhoriais e Idéias Jesuíticas'', de Ronaldo Vainfas (Universidade Federal Fluminense)
3. ''Do Singular Ao Plural: Palmares, Capitães-do-Mato e o Governo dos Escravos'', de Silvia H. Lara (Universidade de Campinas)
4. ''Mineração, Quilombos e Palmares (Minas Gerais No Século 18)'', de Carlos Magno Guimarães (Universidade Federal de Minas Gerais)
5. ''Palmares Como Poderia Ter Sido'', de Richard Price (The William & Mary College).

Leia mais: Quem foi Ganga-Zumba


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