'Confiança na mídia melhorou, mas não é sólida', diz Sally Lehrman

Criadora do The Trust Project avalia que pandemia alavancou imprensa profissional, mas desinformação atrapalha

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Cascavel (PR)

Talvez uma parcela maior da população acredite neste texto no próximo aniversário da Folha. Isso porque a confiança na imprensa vinha em baixa nos últimos anos, mas ganhou um pouco de fôlego com a pandemia de coronavírus —e um público ávido por informações de qualidade. O movimento geral é ascendente, mas com oscilações.

Na avaliação da jornalista Sally Lehrman, 61, esta é uma oportunidade para que a mídia melhore sua relação com o público. Tudo pode ser minado, no entanto, pela desinformação que circula na sociedade e por ataques de figuras políticas.

mulher branca de cabelos grisalhos fala ao microfone em um auditório
A jornalista americana Sally Lehrman, diretora do Projeto Credibilidade (The Trust Projetc) - Juliana Farinha

“Muitas pessoas têm um desejo sincero de entender o que está acontecendo no mundo, na sua comunidade, mas elas têm escutado que as notícias são falsas”, diz.

A confiança está no cerne do trabalho de Lehrman. Ela é a criadora do The Trust Project (Projeto Credibilidade), um consórcio de veículos noticiosos do mundo todo que desenvolve formas de “identificar e promover um jornalismo confiável e de qualidade na internet”. A Folha faz parte do grupo.

O projeto estabelece os chamados “indicadores de credibilidade”, que fornecem um padrão de declarações de princípios éticos seguidos pelas empresas de notícias. Os oito critérios incluem itens como declarações de quem financia o veículo, informações sobre os jornalistas, classificação do tipo de conteúdo (se é uma reportagem ou um artigo de opinião, por exemplo) e clareza sobre os métodos usados na apuração.

A confiança no jornalismo passa por, e impacta, toda a sociedade. Por isso, aparar essas arestas não é uma responsabilidade só da própria imprensa. “É super importante que cada pessoa pense e assuma um papel no ambiente de mídia”, afirma Lehrman. Leia entrevista ou assista ao vídeo.

Partindo do básico, o que exatamente é “confiança” em termos de mídia noticiosa e por que ela é importante?

No Projeto Credibilidade nos referimos ao quanto o público está disposto a acreditar que nós, jornalistas, estamos ali para representar seus interesses, buscando informações precisas e contando a história toda de forma imparcial para que eles possam tomar suas decisões. É confiança de que estamos ali para servir o público.

Para a nossa sociedade funcionar bem, as pessoas precisam confiar no jornalismo, porque aí todos podem ter uma fonte comum de informações. Pode ser que não concordemos em como resolver os problemas na sociedade, mas precisamos concordar quanto a quais são esses problemas e quais os seus componentes. Por isso, a confiança no jornalismo é vital não só para a sobrevivência da indústria, mas também para a da sociedade.

Poderia nos dar um panorama da confiança na mídia?

No geral, a confiança melhorou, mas não de forma muito sólida. Foi e voltou no último ano.

Melhorou porque as pessoas estavam preocupadas com o que estava acontecendo conosco [pandemia] e o que poderia ser feito a respeito disso. Depois, com as eleições nos EUA, um monte de desinformação veio ao mesmo tempo e a confiança despencou.

Com isso, temos uma grande oportunidade para melhorar a confiança, mas também um grande risco por ter tanta desinformação. As pessoas estão perdendo a confiança em todos os tipos de instituição, não só no jornalismo.

E a falta de confiança em outras instituições, bem como o discurso político, criam algum tipo de antipatia em relação à mídia?

Sim. Você está se referindo a algo bastante comum, de políticos que não gostam do que veem na mídia e chamam de fake news. O público pegou esse hábito. Isso ajuda a dar energia a quem está com raiva por qualquer motivo, e eles direcionam esse sentimento à mídia caso sintam que a sua história, ou ponto de vista, não está sendo contada.

Outra coisa que o Projeto Credibilidade percebeu, ao fazer uma pesquisa com dezenas de pessoas ao redor do mundo, é que há muita ansiedade.

Muitas pessoas têm um desejo sincero de entender o que está acontecendo no mundo, na sua comunidade, mas elas têm escutado que as notícias são falsas. Mesmo que a Folha de S.Paulo não seja falsa, existe muita notícia que tenta se passar pelo jornal. As pessoas sabem disso e muitas perderam a confiança na sua habilidade de discernir. Uma coisa que o jornalismo pode fazer é deixar claro por que é diferente, e aliviar essa ansiedade.

Quanto da falta de confiança na mídia é culpa da própria indústria de notícias?

Nós, jornalistas, deveríamos nos perguntar isso o tempo todo. São três coisas.

A primeira é que, conforme fomos para o digital, perdemos nossa audiência de vista. Não temos sido muito bons em engajar e ouvir o público para incorporar todas as perspectivas às histórias.

A segunda é que nós cometemos erros. Quando começamos o Projeto Credibilidade, lembro que uma das coisas que ouvimos do público é que eles gostariam que fôssemos honestos quanto aos erros. Então, algo que pedimos às instituições participantes é não só ter um código de ética, mas também mostrar correções nas suas páginas.

A terceira é que, se pensarmos no que está causando um pouco da desconfiança na sociedade como um todo, é a hiperpolarização e a raiva que as pessoas sentem umas das outras, porque elas não se compreendem. E esse é um papel importante da mídia: não contar só a história dos ricos e poderosos, executivos, do governo, mas de todas em todo o espectro. O que acontece é que há um crescimento do ódio, porque ele tira vantagem desse vácuo que o jornalismo ajudou a criar. Uma falta de conhecimento, vácuo de consciência sobre os outros.

O que foi feito até agora para melhorar a confiança nas notícias e combater a desinformação? O que deve ser feito?

O que eu falei sobre coisas que jornalistas devem fazer também se aplica, porque quando não contamos toda a história, cria-se uma brecha para a desinformação se aproveitar de medos e estereótipos. Algumas das coisas que as grandes plataformas de mídias sociais e buscadores fizeram ultimamente ajudaram.

Quando você tem grandes vozes públicas que estão tentando incitar o ódio ou disseminar desinformação e essas contas são retiradas do ar, cria-se um ambiente mais limpo. Ao mesmo tempo, não é uma solução, porque a desinformação continua existindo no WhatsApp e em outros lugares escondidos de moderadores.

Precisamos ajudar o público a diferenciar notícias de todo o resto

Sally Lehrman

Jornalista e criadora do The Trust Project

Vejo um ponto de inflexão, em que temos a oportunidade de fazer muito mais. Há uma consciência do público sobre desinformação. Uma pesquisa nossa com a Ipsos, empresa que faz estudos de mercado, mostra que 82% das pessoas procuram ativamente por notícias em que podem confiar.

E quanto da responsabilidade de lidar com a desinformação é da sociedade? Pensando em educação midiática, por exemplo, o peso deve ficar todo sobre os jornalistas?

Não é uma luta só da mídia. Também entramos em educação midiática no Projeto Credibilidade porque precisamos ajudar o público a diferenciar notícias de todo o resto. E também ensinar o papel de cada pessoa.

Por exemplo, fizemos uma campanha na qual pedíamos ao público que parasse antes de compartilhar algo em redes sociais para verificar se aquilo é verdade. Não é apurar, mas olhar a fonte. É confiável? E usamos os indicadores de confiança para guiar as pessoas. Quem está por trás dessa história? Como foi financiada? Quem é a liderança? Eles estão ligados a interesses comerciais ou políticos? Se estão, há uma barreira que separa o lado editorial dos interesses? Quem é o jornalista? As fontes são verdadeiras? Tem mais de uma fonte?

É importante que cada pessoa pense e assuma um papel no ambiente de mídia.

As grandes empresas de tecnologia estão sob escrutínio, não só pelas fake news, mas com processos antitruste nos EUA e Europa. Quanto de consertar o cenário de desinformação passa por eles?

A maioria das notícias é distribuída por meio dessas empresas e suas plataformas, sejam elas mídias sociais ou serviços como o WhatsApp. Elas têm agido, mas muito mais precisa ser feito.

É importante que não deixemos todo o poder nas mãos dessas organizações e não podemos confiar somente nelas para resolver tudo, mas elas precisam se mexer. No Projeto Credibilidade trabalhamos regularmente com Google e Facebook, além do Bing, e já trabalhamos com o Twitter. Internamente eles têm trabalhado bastante para entender o que está acontecendo e encontrar soluções.

Do ponto de vista de políticas, não vimos muito. Algumas das ações das últimas semanas, quando cortaram as vozes que espalhavam falsidades, deveriam ter sido feitas antes. Era tarde demais.

Nos EUA, Donald Trump questionou sem base o resultado das eleições e, no Brasil, Jair Bolsonaro imita as suas ações, particularmente nessa área. Como a mídia e a sociedade brasileiras devem agir para evitar que o mesmo aconteça aqui em dois anos?

​Com a eleição, e argumentos de fraude, algumas coisas levaram a isso. Demos bastante espaço para preocupações sem embasamento. Se eu fosse editora de todos os jornais nos EUA, eu teria dado pouca ênfase a isso ou pelo menos dado um contrapeso mais forte.

Tem também a distribuição, sobre a qual temos pouco controle. Quando vejo notícias no celular, tento dar o mínimo de informação para os algoritmos a fim de tentar enxergar o que outras pessoas estão recebendo. Me surpreende, porque são muitos veículos conservadores e, às vezes, sem diferenciar opinião de notícia. Dá pra entender porque as pessoas ficam confusas.

Então, temos que manter a pressão sobre as plataformas para que elas não canalizem alguns tipos de informação para quem quer ouvir.

É importante que cada pessoa pense e assuma um papel no ambiente de mídia.

Sally Lehrman

Criadora do The Trust Project


RAIO X

Sally Lehrman

É jornalista de ciência e saúde ganhadora do prêmio Peabody por excelência na cobertura dos temas. Fundou o The Trust Project, iniciativa global voltada ao fortalecimento da relação de confiança entre público e imprensa. O projeto envolve 75 grupos de notícias ao redor do mundo e criou os Indicadores de Confiança, que ajudam leitores a avaliar a qualidade de um veículo de mídia.

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