Descrição de chapéu E eu? jornalismo

'Nos tratam como se a gente fosse um bicho exótico', diz escritora trans

Para Amara Moira, mídia ainda espetaculariza vidas de pessoas trans

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Amara Moira

Travesti, feminista e doutora em teoria e crítica literária pela Unicamp. Autora de ‘E se Eu Fosse Puta’ (hoo editora, 2016) e ‘Neca + 20 Poemetos Travessos’ (O Sexo da Palavra, 2021)

São Paulo

Como parte dos projetos especiais dos 100 anos da Folha, o jornal convidou 13 integrantes de grupos sub-representados no jornalismo profissional praticado no Brasil. Eles expõem episódios de preconceito e desinformação, além de problemas na relação com jornalistas e na forma como a imprensa noticia —ou não noticia—questões que os afetam direta ou indiretamente.

Batizada de “E Eu? - O Jornalismo Precisa me Ouvir”, a série é formada por vídeos e depoimentos em forma de texto.

A escritora Amara Moira sentada em auditório. Ela está de vestido marrom e cabelo solto, abaixo dos ombros
A escritora Amara Moira - Bruno Santos/Folhapress

Ativista do transfeminismo e professora de literatura, a escritora Amara Moira, 36, fala sobre a representação das pessoas trans na imprensa. Ela é autora do livro “E Se eu Fosse Puta”, doutora em teoria literária pela Unicamp e colunista do Mídia Ninja. Leia entrevista ou assista ao vídeo (há uma versão com recursos de acessibilidade logo abaixo).

VERSÃO COM RECURSOS DE ACESSIBILIDADE

Vivi por 29 anos como homem e tentei por muito tempo ser esse homem que me disseram que eu era. Bem aos poucos, fui me dando conta de que era pesado existir dessa forma. Eu queria testar, queria o direito de experimentar.

Uma das primeiras reações que tive dentro da Unicamp, quando comecei a mudar minhas roupas e meu nome, foi de uma colega de pós-graduação: “O que aconteceu? Você vai virar prostituta?”. Eu estava vestindo uma calça jeans, um tênis cor de rosa e uma camisa do Bob Esponja. Não existia absolutamente nada que indicasse isso, salvo o fato de eu ser travesti num país profundamente transfóbico.

Qualquer lugar que eu ia, sempre tinha alguém que me parava para perguntar o meu preço. É como se estivesse escrito na minha testa.

Acabei virando prostituta mesmo. Quando comecei a me aproximar das travestis que exerciam a prostituição, me senti bem ali. Era uma rua inteira só de travestis —imagina estar num lugar onde o seu corpo é maioria.

Eu gostava de estar ali. Ali, os clientes podiam dizer que eu era bonita, me paquerar. Eu podia construir uma relação positiva com meu corpo. Por mais que fosse um espaço marginalizado, de muita violência, havia outros aspectos que compensavam isso.

A escritora Amara Moira segura seu caderninho de anotações, durante entrevista à Folha
A escritora Amara Moira segura seu caderninho de anotações, durante entrevista à Folha - Bruno Santos/Folhapress

Decidi escrever sobre minhas experiências e escancarar esse mundo. Comecei a colocar isso num blog e, dois anos depois, uma editora me perguntou se eu não queria transformar aquilo em livro.

A reação da mídia foi interessante. Fiquei imaginando que fariam leituras aprofundadas do texto, que trariam discussões, e a sensação que eu tinha era que as pessoas paravam no título.

Eu via uma espetacularização do fato de eu ser uma travesti-doutora-prostituta —tudo girava em torno disso. O livro virava detalhe. Servia para atiçar a curiosidade das pessoas, mas pelos motivos errados.

Meu corpo é público e as pessoas se sentem na necessidade de conversar sobre coisas íntimas. Nos tratam como se a gente fosse um bicho exótico num zoológico.

Ao longo do século 20, a mídia tomou posições ambivalentes com relação a pessoas trans. Se nos anos 1950 existiu todo um deslumbramento diante das primeiras cirurgias exitosas de redesignação sexual, 20 anos depois, quando começam essas cirurgias no Brasil, o posicionamento da mídia hegemônica muda.

Nessa época, teve um monte de matérias do Notícias Populares falando da forma mais aberratória possível a respeito de homossexuais, com ênfase específica em travestis como figuras terríveis, violentas, agressivas.

A presença trans nos meios de comunicação é cada vez maior e há uma pluralização das abordagens a nosso respeito

Amara Moira

Escritora

O próprio Estadão fez uma série de matérias, nos anos 1980, sobre “os problemas dos travestis”. Lembro até de uma submanchete: “Ninguém os quer. Nem a polícia”. As operações de prisão para travestis e prostitutas contaram com amplo apoio da mídia hegemônica aqui em São Paulo.

Isso não ficou só nos anos 1980. Em 2018, morreu um indivíduo que ao lo ngo da vida foi conhecido como Lourival Bezerra e, quando foi analisado pelo IML, descobriram que ele tinha vagina. Teve um monte de matérias alucinadas sobre “a mulher que se passou por homem por 50 anos e enganou todo mundo”

É esse o tipo de contradição que a gente vive: a presença trans nos meios de comunicação é cada vez maior e há uma pluralização das abordagens a nosso respeito. Você lê a palavra travesti e não tem mais certeza de que o texto fala sobre assassinatos e corpos encontrados na rua, como há 40 anos. Pode ser uma matéria sobre a Linn da Quebrada, ou sobre figuras que estão se firmando como referências artísticas e intelectuais.

Muitas vezes fiquei profundamente irritada com matérias e, quando conversava com o jornalista, ele me dizia: “Ah, foi o meu editor que mudou o título na hora. Escrevi de outra forma, mas ele achou que assim iria gerar mais repercussão”. Esse modelo do clickbait é tenebroso, porque abre brecha para que as matérias se avizinhem das fake news e da desinformação. Acho que o trabalho de uma direção de jornal hoje é produzir um jornalismo que seja capaz de retomar o seu propósito sem se vender e sem se deixar contaminar pela lógica das redes sociais.

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