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  10 de janeiro de 2001
  Mistura Fina
   
   

Caetano Veloso, outra vez

"Noites do norte" traz Caetano Veloso de volta a momentos iluminados, como os de "Coração vagabundo", "Paisagem útil", "Triste Bahia", "Trilhos urbanos", "O Ciúme", "Circuladô de fulô". A produção média do artista é excelente há quase 35 anos, desde o LP "Domingo". Há, porém, pontos altos. Penso que é o caso do CD recém-lançado.

Nele Caetano propõe, por meio de uma série de canções bem resolvidas, uma interpretação do Brasil. Não é um disco conceitual, monotemático, aborrecido. Como numa sinfonia, o tema - a escravidão - desdobra-se de modo sutil. Parte de um núcleo - a servidão negra -- e envereda sem que se perceba por recantos imprevistos. Ou será que quando ao final da obra, o cantor afirma: "Com as mucosas venenosas de sua alma de mulher/Você faz o que quer" (em "Tempestades solares"), está a falar de outra coisa?

Depois de uma bela e rápida introdução que ressoa a Dorival Caymmi, em que o compositor propõe como que uma suspensão dos juízos ("zera a reza, meu amor"), pode-se entrar no assunto principal.

Já se entenderá por que antes de começar era preciso abrir a mente. O texto de Joaquim Nabuco musicado por Caetano, e que dá nome ao CD, traz um paradoxo. Afirma que a escravidão "espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade". Como é que pode, a violência maior, a crueldade abjeta, a brutalidade cotidiana espalhar "suavidade"?

Essa a dificuldade a ser enfrentada. Joaquim Nabuco foi um monarquista. Filho do Barão do Rio Branco, herdeiro e continuador da tradição que caracteriza a elite política do Brasil desde o século XIX, a tentativa de conciliar as profundas contradições do país. Nabuco foi abolicionista e produziu páginas de grande profundidade e riqueza sobre as perversas conseqüências que a servidão teria para o futuro nacional. Não deixou, contudo, de ser monarquista. Com a proclamação da República, retirou-se da política.

Não deve ser casual que logo depois da extraordinária "Noites do norte", Caetano apresente "13 de maio" ("Dia 13 de maio em Santo Amaro/Na Praça do Mercado/Os pretos celebravam/(Talvez hoje inda o façam)/O fim da escravidão/Da escravidão/O fim da escravidão"). A canção é um pequeno intermezzo entre Nabuco e Jorge Ben, que virá em seguida com "Zumbi".

Ou seja, antes de contrapor a saída revolucionária carioca ("Quando Zumbi chega/É Zumbi é quem manda") ao diagnóstico melancólico do pernambucano Nabuco ("a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil"), Caetano dá uma chance à solução baiana. Os pretos celebram o 13 de maio na Bahia "Pra saudar Isabel ô Isabé/Pra saudar Isabé". Quer dizer, lembram o gesto da princesa que, no apagar das luzes do Segundo Reinado, quis fazer passar para a História com cores mais humanas o longo governo do pai, D. Pedro 2º.

A libertação, contudo, demorou demais. Como suportar que o Brasil tenha sido o último grande país do mundo a ter seres humanos obrigados a trabalhar sem salário? "O suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte" (Nabuco), é um suspiro de dor. Como conciliar em uma nação assim?

Ensaio uma interpretação. A resposta de Caetano está no aspecto dissonante das canções de "Noites de norte". Uma obra pop feita de bossa nova radicalizada, extremada, sem concessões. Atenção, eu disse "obra pop". Quer dizer, realizada para o mercado. Não é trabalho erudito, ainda que beba em fontes várias. A dor da conciliação impossível, mas sempre desejada, está expressa na dissonância das canções, em especial a própria "Noites do norte". Posto o tema em "Noites do norte", "13 de maio", "Zumbi", Caetano nos conduzirá por uma visitação que passará pelos "mano" que hoje usam o rap com a mesma "vontade fela-da-puta de ser americano" de Raul Seixas ("Rock'n'raul"), por "Grécia, Roma e Cristandade" ("Cantiga de boi") pela "favela do Muquiço" ("Meu Rio"), até chegar à dependência amorosa de "Tempesdades solares".

No meio há ainda uma emocionante homenagem a Michelangelo Antonioni, um poema da Waly Salomão e duas maravilhosas canções de amor ("Ia" e "Sou seu sabiá").

Que bom ter Caetano de volta, para comentar assim, com arte, o século que começa.



Livro da semana

"Teoria geral da política, a filosofia e as lições dos clássicos" (Campus 2000, 717 páginas) de Norberto Bobbio, com organização de Michelangelo Bovero, é uma obra de referência. Resultado de um projeto longamente acalentado, chega por fim à conclusão. Quando esteve no Brasil, no começo dos anos 90, Bovero, o herdeiro intelectual de Bobbio, contou que esperava poder reunir os trabalhos produzidos pelo jurista, filósofo e cientista político em um arcabouço que permitisse vislumbrar uma teoria geral da política. Aí está.

Trecho

"Um dos maiores teóricos da democracia, Hans Kelsen, considera elemento essencial da democracia real (não da democracia ideal, que não existem em lugar algum) o método da seleção dos líderes, ou seja, a eleição. Exemplar, a esse respeito, tão exemplar a ponto de parecer inventada, é a afirmação de um juiz da Corte Suprema dos Estados Unidos por ocasião de uma eleição de 1902: 'A cabine eleitoral é o templo das instituições americanas, onde cada um de nós é um sacerdote, ao qual é confiada a guarda da arca da aliança e cada um oficia do seu próprio altar'. Se depois aqueles que nelas entram nem sempre são a maioria, é coisa que acontece em todas as igrejas".

Verso pop da semana

"We always came back to the song
we were singing
at any particular time"
Paul McCartney, em "The song we were singing", CD "Flaming Pie".



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