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André Singer
asinger@uol.com.br
  17 de janeiro de 2001
  Mistura Fina
   
   

Tragédia e teoria política em Camaragibe

    "(...)Durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum (...) a vida é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta". Thomas Hobbes


Há dois meses escrevi aqui uma coluna em que falava de um documentário feito em Pernambuco. Na terça (16/01) pela manhã, minha mulher veio avisar: "Mataram o pequeno príncipe". No início, não entendi. Pensei que houvesse algo relacionado ao escritor Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), autor de "O pequeno príncipe", no jornal. Só quando ela repetiu a frase, me toquei. Referia-se a Hélio José Muniz Filho, o justiceiro que atuava em Camaragibe, grande Recife.

Preso e acusado de 65 mortes, Helinho, 24 anos, era conhecido como "pequeno príncipe", não consegui saber por quê. Em torno dele gira "O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas" um dos raros filmes que mostram a periferia por dentro. Conduzido por um amigo de infância de Helinho, o baterista de rap José Alexandre Santos, a fita transmite o clima sufocante, enlouquecedor da violência nas áreas pobres das regiões metropolitanas brasileiras, a de Recife em particular, tida, hoje como a cidade mais violenta do Brasil, o que não é dizer pouco.

Para mim, que há alguns anos leio Thomas Hobbes (1588-1679) entre admirado e aterrorizado, a mensagem era clara: quando não existe Estado, perde-se a noção do certo e do errado. Helinho matava "almas sebosas", gente do mal, que rouba de trabalhadores pobres o pouco que eles conseguem com o suor dos rostos. A população local gostava dele. Mandou um abaixo assinado pedindo a sua libertação. Por isso ele era bom?

O filme tem o mérito de propor o problema, cada um que reflita e chegue às próprias conclusões. A do músico José Alexandre, também conhecido como Garnizé, está hoje no jornal (mas não a vi no filme). "Helinho dizia que limpava a cidade das almas sebosas e esquecia que os bandidos também eram gente", disse ele ao repórter Fábio Guibu, da Agência Folha. O mais importante, no entanto, viria a seguir: "No começo, ele matava por dinheiro. Depois, acho que a fama de justiceiro ficou mais forte".

Ou seja, Garnizé nos alerta para o fato de que a motivação para matar não era nobre. Matar por dinheiro ou por prestígio não conferem legitimidade à ação. Pode até ser que os assassinados tivessem cometidos crimes horríveis. Como saber? Quem conferiu ao pequeno príncipe de Camaragibe o direito de decidir?

O filósofo John Locke (1632-1704) achava que a única razão para existir o Estado era que ele respondia a essas questões. Delegamos ao Estado o direito de decidir a punição que cabe ao ser humano que investe contra os direitos de outro ser humano, a começar pelos direitos à vida e à liberdade.

Como saber, porém, que o Estado, formado por homens exatamente iguais ao pequeno príncipe de Camaragibe e a todos nós - isto é, desejosos de bens materiais e reconhecimento - iriam decidir melhor que ele? De fato, não há nenhuma garantia, por isso o Estado é um artefato tão perigoso. Dotado de enorme poder, se resolve pela injustiça terminamos nos fornos crematórios.

A solução de Locke, precária como tudo que é humano, é a única, no entanto, que parece sensata. Locke dizia, em outras palavras, o seguinte: é preciso controlar o Estado. A sociedade precisa fiscalizar, estabelecer meios de verificação, freios e contrapesos para ver, a cada instante, se o Estado caminha para o lado da justiça. Dá certo? Muitas vezes, não. O Estado erra (por isso evita-se a pena de morte no Brasil, pois ela é irrevogável), os seus agentes se corrompem e, tantas vezes, age a favor dos poderosos contra os fracos. Isto é, em lugar de propiciar justiça, acentua a injustiça. Outras vezes, todavia, o experimento dá certo. O Estado consegue proteger o cidadão -- sobretudo o mais fraco, que mais o necessita --, agir com imparcialidade e permitir que floresça a civilização. Ainda que falhe, e falha muito, creio que até hoje não se inventou solução melhor.

Por isso, a ausência do Estado - que é o que mostra O rap - se constitui em uma tragédia, que mergulha homens e mulheres na mais negra barbárie. Da próxima vez que for ensinar Hobbes e Locke a meus alunos vou passar "O rap do pequeno príncipe".

***

Por coincidência (termino estes dias um pequeno livro sobre o PT para o Publifolha), descubro que Camaragibe é governada pelo PT desde 1996. O prefeito Paulo Santana recebeu da Unicef e da Fundação Abrinq, em 1999, o Prêmio Prefeito Criança. O psicanalista Jurandir Freire Costa, que é pernambucano, escreveu, no final de 1999, um artigo aqui na Folha Online em que fala da mudança da cara da cidade na administração de Santana.

Não duvido. Ele foi reeleito em 2000. Mas a realidade retratada no documentário mostra que, pelo menos na área da segurança, as autoridades continuam ausentes. É certo que a segurança compete ao governo do Estado e não do município. Mas o PT, que hoje administra boa parte das regiões metropolitanas do Brasil, não poderá deixar de ter uma política para esse setor literalmente vital.

Livro da semana

Sugiro, para quem tiver a sorte de possuir a concentração necessária, a leitura de "O Castelo", de Franz Kafka (1883-1924), na tradução de Modesto Carone (Companhia das Letras, 2000), tida pela crítica como excelente. Nutro por Carone, de quem cito abaixo um trecho do posfácio ao "Castelo", admiração desde que li "Resumo de Ana" (Companhia das Letras), de sua autoria.

Trecho

"Em outras palavras, diante do impasse moderno da perda da noção de totalidade, aquele que narra, em Kafka, não sabe nada, ou quase nada, sobre o que de fato acontece - do mesmo modo, portanto, que o personagem. Trata-se, quando muito, de visões parceladas, e é essa circunstância - se se quiser, alienação, que obscurece o horizonte da narrativa, pois o narrador não tem chance de ser um agente esclarecedor ou 'iluminista'".

Verso pop da semana

"People say we got it made
Don't they know we're so afraid
Isolation
We're afraid to be alone
Everybody got to have a home
Isolation"
John Lennon, em "Isolation", de 1970.



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