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André Singer
asinger@uol.com.br
  19 de janeiro de 2001
  Mistura Fina
   
   

Dois países, uma ponte?

A redução de 0,5 ponto na taxa de juros básica da economia (Selic) pelo Comitê de Política Monetária (Copom) na quarta-feira, 17/01 mostra que o governo parece ter escolhido uma linha de moderada alteração na maneira de conduzir a política econômica. É importante compreender esse movimento porque ele pode induzir - na medida em que não ocorrerem bruscas alterações internacionais - a uma melhoria, modesta, das condições sociais.

A decisão do Banco Central de baixar os juros de 15,75% para 15,25% corresponde a uma saída intermediária entre o que desejavam alguns setores empresariais e o que pedem outros, estes muito próximos, hoje, das propostas da oposição. São as famosas fricções interburguesas a que se referia Marx, quando ainda era lido. Para verificar a divergência basta cotejar o artigo do presidente da Federação do Comércio de São Paulo, Abram Szajman, publicado na Folha no mesmo dia em que o Copom reunia-se em Brasília. O que afirma Szajman? Em resumo, que uma excessiva queda na taxa de juros pode resultar em dificuldades de captar recursos externos. Claro, juros menores significam que, para o investidor estrangeiro, o Brasil fica menos interessante.

A conclusão do artigo, na verdade um recado do setor comercial ao governo, é o seguinte: "Um patamar de 15% da Selic para este ano talvez seja até incoveniente". Ou seja, o BC, com a redução de quarta, já estaria a bater no piso que os comerciantes querem manter até o fim do ano.

Compare-se com o que afirma o site Primeira Leitura. Só para lembrar, Primeira Leitura foi criado pelo ex-ministro das Comunicações e ex-presidente do BNDES Luiz Carlos Mendonça de Barros. Depois que deixou o governo Fernando Henrique, Mendonça de Barros converteu-se em um duro crítico da orientação simbolizada por Pedro Malan e um ferrenho defensor de haver uma política de incentivo à indústria.

Pois bem, o Primeira Leitura fez um exercício curioso. Simulou uma reunião do Copom e chegou, com base em uma avaliação das mesmas condições macroeconômicas levadas em consideração por Szajman, à conclusão de que a taxa de juros deveria ter caído ainda mais. Deveria ter ido já para 15%. E tem mais: se dependesse do "Copom alternativo", no começo de abril ela já atingiria 14%. Nesse ritmo, imagino eu, o Brasil chegaria em dezembro com 11%, ao passo que Szajman preferiria 15,25%, uma vez que aha o "patamar de 15%" talvez "inconveniente".

Caro leitor, tudo isso pode parecer de uma chatice e de uma irrelevância absurda. Qual afinal a diferença entre 11% e 15%? Significativa. Com a pequena, do ponto de vista do Primeira Leitura e da oposição, redução de quarta-feira, o Brasil poderá economizar R$ 1,3 bilhão de juros. Veja-se, agora, o que diz uma das economistas sêniores da esquerda, Maria da Conceição Tavares: "O Orçamento da União para o ano prevê o pagamento de juros de mais de R$ 140 bilhões. Isso equivale a um terço das despesas globais e mais do que o dobro dos gastos federais com saúde, educação e defesa. O saneamento básico praticamente não estava previsto para as áreas mais carentes, como o Norte, o Nordeste e a Baixada Fluminense, no projeto enviado pelo Ministério do Planejamento. Isso sem falar das periferias das áreas metropolitanas".

Quer dizer, reduzir os juros é fundamental para inverter o rumo da economia. Em lugar de manter o barco equilibrado com injeções maciças e contínuas de dinheiro vindo de fora, a oposição, interna e externa ao governo, propõe maior crescimento da produção, favorecida por créditos mais acessíveis, e aplicação dos recursos públicos em projetos sociais, como o de saneamento básico, tão necessário para melhorar a qualidade de vida nas regiões pobres.

O Brasil está profundamente dividido. Há uma parcela ponderável da sociedade que tem emprego, o qual cresceu de maneira lenta em 2000, água tratada e dinheiro para comprar presentes em shopping centers no final do ano. Não se deve, em hipótese alguma, desconsiderar o peso numérico dos que estão desse lado do rio. Não estou falando dos milionários. Refiro-me ao que devem ser uns 50 milhões de brasileiros bem ou mal "integrados", "incluídos", como se costuma dizer de uns anos para cá.

Na outra margem, há uma multidão que não tem nada ou muito pouco. Vivem em lugares onde falta tudo, de segurança mínima a um trabalho remunerado, passando pela tal água tratada da professora Conceição. Quantos serão? Quem sabe 70 milhões de compatriotas?

Quem olha para a margem incluída vê os shopping cheios. E estão mesmo. Quem olha para a outra, vê as chacinas da periferia que hoje cortam o país no mínimo de nordeste a sudeste, de Camaragibe, na Grande Recife ao Capão Redondo, em São Paulo. E elas não param de acontecer.

Os tais pontinhos percentuais da taxa de juros, que parecem conversa mole de engravatados, falam da possibilidade de construir uma primeira e frágil ponte entre as duas margens. É claro que não serão apenas os juros que vão fincar os eventuais pilares dessa ligação. O que vale a pena notar é a sutil, cautelosa, alteração dos rumos do conservador governo de FHC. As declarações do presidente no Canadá, ao pregar "tratamento especial" para a indústria nacional, e a escolha de um ex-industrial, Celso Lafer, para o Ministério das Relações Exteriores, não são casuais. Lembrem-se das fricções interburguesas. Mas isso é assunto para outro artigo.

Livro da semana

Sugiro, para quem tiver a sorte de possuir a concentração necessária, a leitura de "O Castelo", de Franz Kafka (1883-1924), na tradução de Modesto Carone (Companhia das Letras, 2000), tida pela crítica como excelente. Nutro por Carone, de quem cito abaixo um trecho do posfácio ao "Castelo", admiração desde que li "Resumo de Ana" (Companhia das Letras), de sua autoria.

Trecho

"Em outras palavras, diante do impasse moderno da perda da noção de totalidade, aquele que narra, em Kafka, não sabe nada, ou quase nada, sobre o que de fato acontece - do mesmo modo, portanto, que o personagem. Trata-se, quando muito, de visões parceladas, e é essa circunstância - se se quiser, alienação, que obscurece o horizonte da narrativa, pois o narrador não tem chance de ser um agente esclarecedor ou 'iluminista'".

Verso pop para fim-de-semana de meio de verão:

"Não há
Um luar que venha em vão
Que não deixe algum sinal no coração
Vêm assim tão deslumbrantes
Que prefiro ver o dia raiar
Não há
Um luar puro, inocente
Sempre a chama é quente
Sempre queima a gente
Sempre é envolvente
Risco permanente
Entorpece e dá o bote
O seu veneno é muito forte"
Luiz Tatit, em "Luar", canção gravada no disco "Felicidade" (Dabliú discos)



Leia colunas anteriores
17/01/2001 - Tragédia e teoria política em Camaragibe
12/01/2001 - O fator Itamar
10/01/2001 - Caetano Veloso, outra vez
05/01/2001 - Os juros do Fed, a sorte de FHC e o terceiro tempo
03/01/2001 - A hora do discurso e o momento da ação

 


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