|
|
DEPOIMENTO
Era tudo paranóia
OTAVIO FRIAS FILHO
Diretor de Redação
Os heróis de Homero não eram certamente
mais audazes / que o nosso Trio, mas tiveram melhor sorte: Heitor / foi
poupado ao vexame de a sua bravura / ser coberta pelas câmeras de
televisão.
W.H. Auden, Descida na Lua, 1969
Quando os americanos chegaram à Lua, eu estava, aos 12 anos, atravessando
os Estados Unidos de uma costa à outra numa viagem com meus pais
e irmãos. Era uma oportunidade desperdiçada em introspecções
de adolescente, enfurnado no fundo do carro. O que me deprimia, penso hoje
e não seria capaz de formular então, era a superioridade da
civilização americana.
Naquela época, os Estados Unidos ainda preservavam as aparências
assépticas com que se retrataram nos anos 50, e pairava, sobre sua
ofuscante exuberância material, a sensação de que tudo
funcionava bem. Eles eram mais avançados, mais democráticos,
mais puritanos, mais eficientes, sua grama era mais bacana,
como no verso de Paulo Leminski. Essa percepção, que se estabeleceu
em mim naquela viagem, foi por muito tempo uma fonte de inconformismo, despeito,
admiração e hostilidade. Como tantas outras gerações
de brasileiros, também fantasiava ajudar a fazer do Brasil, quando
crescesse, um Estados Unidos à nossa maneira.
A expedição à Lua foi plasticamente memorável
por ajustar os dois lados do mito americano, o tecnológico e o romântico.
O astronauta solitário nos espaços infinitos é o herói
emersoniano, popularizado pelo western, por Charles Lindbergh, por
Humphrey Bogart, indivíduo comum elevado ao estatuto de nação
soberana em guerra aberta contra a natureza e contra seus semelhantes. Seu
perfil intratável, no entanto, é amenizado pela tecnologia
e pelo trabalho em equipe que ela impõe. O astronauta não
deveria resumir-se a um cowboy, nem mesmo a um engenheiro: segundo
a propaganda da Nasa, Neil Armstrong, por exemplo, lia grego.
Eu acompanhava a corrida espacial com empolgação, sabia os
nomes dos astronautas e dos seus colegas e rivais, os cosmonautas, não
me parecia haver assunto mais digno de interesse para a humanidade. Não
torcia pelos americanos, ficava num nacionalismo embrionário e imparcial,
admirando os lances dos dois times como um torcedor interiorano. Mas o dia
que eu esperava fazia tanto tempo revelou-se previsivelmente anticlimático.
Estávamos no meio do deserto, sol e calor, acho que era em Nevada.
Paramos para almoçar à beira da estrada, num daqueles motéis
sinistros, de Nabokov e Hitchcock, que surgem do nada nos descampados do
Meio-Oeste americano. Não havia festa, nem bandeira. Chegamos em
cima da hora, a televisão da sala de estar já estava cercada
de gente, algumas em pé; não se via nada. Se os tripulantes
da Apollo 11 fossem brasileiros, seria difícil não imaginar
essa cena como uma espécie de conquista do penta.
Mas o clima ali era o de um coquetel afável, e logo que Armstrong
disse, sua voz aguda e ofegante, com um intervalo longo entre as orações,
a frase decorada (é um pequeno passo para um homem, um gigantesco
salto para a humanidade, frase inaudível naquele momento),
quando todos se certificaram de que ele tinha chegado bem, começaram
a se dispersar, de volta às mesas e aos carros. Não posso
ter ficado ali sozinho, vitrificado diante da televisão, como me
sugere a memória, mas fiquei bastante tempo, saboreando o desprezo
que sentia por aquela quase-indiferença.
Fixada na base do módulo lunar, a câmera mostrava uma imagem
turva da escada e da silhueta de Armstrong, num claro-escuro violento, como
num filme de Murnau. Era fantasmagórico. Era a primeira vez que se
via um ser humano como se fosse um extraterrestre (e em certo sentido ele
era). A nave levava uma placa onde estava gravado, a quem interessar possa,
que os visitantes vinham em missão de paz em nome de toda a
humanidade. Não levaram a bandeira da ONU, porém, mas
a do seu país, que deixaram desfraldada ao vento solar.
A corrida espacial é um dos melhores exemplos do comando incrível
que a ideologia pode ter sobre os homens. Não estava em jogo nenhum
objetivo estratégico, econômico, nem sequer científico.
Era tudo propaganda e paranóia. E talvez os soviéticos tenham
começado a perder a Guerra Fria naquele 20 de julho em que, ao ceder
a Lua, cediam também Marte, concentrando-se nos seus esforços
tradicionalmente infrutíferos em direção a Vênus.
|