Dinamarquesa vira funkeira no Rio com letra que ironiza fala de Damares

Frederikke Gjedde Palmgren adotou o nome de Fefe Life para realizar o sonho de tornar-se artista do gênero

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Rio de Janeiro

A dinamarquesa Frederikke Gjedde Palmgren, 30, não quis fazer a faculdade de nanotecnologia que seus pais (ele, biólogo genético; ela, dona de escola de francês) gostariam. Frederikke preferiu entrar no concurso de um programa chamado Realize seu Sonho, na TV da Dinamarca. Sonho dela: ser funkeira no Rio de Janeiro. 

E não é que ela conseguiu? Há cerca de um ano morando na cidade, primeiro na Glória, agora na favela Ladeira dos Tabajaras, ela mudou seu nome para Fefe Life e já produziu (compôs, tocou, cantou e fez clipe de) uma série de músicas. A mais ouvida em seu Spotify é “Metrô Rio”, na qual recria a musiquinha que toca nos vagões cariocas e vai falando o nome das estações com seu divertido sotaque dinamarquês.

Já “Balinha” ficou conhecida como “Funk da Damares” no Carnaval de 2019. Fefe sampleou a frase “Eu ia tomar aquela substância, entenderam?” de um vídeo de uma pregação da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos.

No trecho, Damares Alves conta que, aos 10 anos, depois de ter sido estuprada, planejou se matar com um veneno, até que viu Jesus no pé de goiaba do quintal. Em seguida, Fefe canta “Dá, dá, dá balinha/ Cheguei no baile sem calcinha/ Agora o que falta é tomar a balinha”.

A última produção de Fefe (pronuncia-se Fefê, pois quando criou o nome ela não conhecia a regra do circunflexo em português) é “Mas Eu Sei que É Putão”, que ganhou um vídeo sensual em seu canal no YouTube.

 
“Estudei muito o Mr. Catra”, diz ela. “Foi quem me atraiu para o funk. Estudei o Miami bass, que é a origem do ritmo, e estudei o funk putaria daqui, o funk facção, o funk consciente etc. É o hip hop de vocês. E é 100% arte”, afirma Fefe, em entrevista no quintal de seu apartamento na Ladeira dos Tabajaras, que dá vista para toda a comunidade morro acima e para o bairro de Copacabana embaixo.

Ela desfia outras inspirações do funk moderno: MC Carol, Iasmin Turbininha e MC Dricka. Velvet Underground no rock. E os artistas para quem produz: Thunder Trash, Viniboy, Michael Douglas (um homônimo, é claro), Pérola e Iguinho Imperador.

Também vai começar a produzir Helt MC, com quem está casada desde junho. Ele, que acaba de lançar a canção “Resistência Cultural”, é artista de rap e apresentador de rodas culturais.

O contato inicial de Fefe com o gênero foi em sua primeira viagem ao Rio, por volta de 2015. Na época, ela arrumou emprego em um hostel na Glória e morava numa garagem sem paredes com mais oito pessoas. “A garagem tinha apenas grades e lençóis pendurados para proteger. Lá dentro, no beliche, eu ouvia os carros descendo de Santa Tereza com essa batida louca no volume máximo. Fui aprendendo português assim.”

De volta à Dinamarca, Fefe começou a produzir em seu laptop e arrumou um empresário. Chegou a lançar duas músicas pela Warner em 2017, uma pop e outra rap. Mas o que mais gostou de fazer foi uma versão funk de “Ela Partiu”, de Tim Maia. Nem seu empresário nem a gravadora quiseram saber dessa, mas, no Brasil, a canção foi postada na internet e causou certo bochicho. “Foi quando eu vi que meu sonho estava acontecendo.”

Em 2018, duas coisas mudaram a vida de Fefe. Bolsonaro ganhou a eleição, e surgiu o tal programa na TV de seu país. O primeiro fato fez com que ela quisesse se mudar definitivamente para o Brasil. O segundo tornou o sonho possível.

“Foi um dia muito triste quando ele ganhou. De medo. Conheço muitas trans no Brasil, e pessoas LGBTs, e elas disseram que se sentiam em perigo naquela noite. Eu pensei que não fazia mais sentido fazer funk carioca morando na Dinamarca. Falar dos problemas do Brasil sem estar no país para fazer parte da resistência. ‘Se eu quero seguir esse caminho, tenho que estar lá com eles’, pensei.”

Após se inscrever para ser funkeira no Rio, Fefe foi umas das vencedoras entre mil candidatos —outro ganhador foi um homem com o sonho de abrir um museu apenas de instrumentos para quebrar nozes. Ainda em 2018, ela foi filmada em sua casa em Copenhague e, no ano seguinte, recebeu a equipe da televisão no Rio. O programa finalmente foi ao ar nos dois primeiros dias de 2020.

O prêmio, pago em 2018, foi de 100 mil coroas dinamarquesas (R$ 63 mil). “Só que na Dinamarca pagamos imposto de 50%. Então recebi metade disso”, revela. O dinheiro foi suficiente para sua mudança, mas já acabou há muitos meses. 

Loira com cabelo pintado de preto, Fefe diz pensar muito no problema da apropriação cultural. “Havia preconceito de alguns brasileiros quando eu morava na Dinamarca. Mas agora não sinto mais. O funk não tem isso, recebe todo mundo.” 

“Não tem nada que eu respeite mais que a raiz do funk e sei que sou só uma gringa apaixonada. Me sinto extremamente grata por ter sido tão bem-vinda no mundo de funk. Mas tenho que morar aqui e aprender o português”, diz ela, que aprendeu a língua também com Tim Maia, Jorge Ben, Raul Seixas, Secos & Molhados.

A funkeira é ambiciosa: tem um selo chamado Have No Fear e produz sem cobrar para alguns artistas que gosta. “No futuro quero fazer uma fundação de funk com estúdios nas favelas para [ser possível] produzir uma música inteira e depois botar no Spotify sem custo nenhum. Porque existem muitos talentos aqui e meu sonho é espalhá-los”, afirma, usando corretamente a ênclise.

Sua expressão preferida, entretanto, é “muito(a) louco(a)”, o que é compreensível para uma dinamarquesa enfrentando os problemas diários de uma comunidade no Rio e da política no Brasil.

A última coisa que Fefe achou muito louca por aqui foi a sugestão da ministra Damares para que os adolescentes não façam sexo. “Isso dá funk, hein?”, termina ela, pensativa, já maquinando no cérebro uma batida para a nova canção.

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