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Flip virtual em ano de lives é marcada por sintonia temática entre escritores

Edição sem o charme de Paraty foi compensada pelo ar de renovação trazido por autores dissidentes de gênero

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São Paulo

O maior desafio da Flip, neste ano, era não ser só mais uma live na multidão.

Todo evento, de grande ou pequeno porte, precisou se transformar em virtual para continuar vivo em 2020. Isso incluiu os festivais literários, e vários dos menores aproveitaram para montar programações robustas, já que convidados internacionais não precisaram se deslocar ao Brasil.​

A Flip chegou só em dezembro, quando praticamente todo escritor vivo já tinha dado as caras na internet. Como continuar relevante numa situação dessas?

O que a festa paratiense —desta vez menos paratiense que nunca— acabou fazendo foi tocar em frente boa parte daquilo que já estava planejado para a frustrada edição presencial de julho, uma decisão guiada por razões tanto artísticas quanto financeiras.

Recursos públicos e privados já estavam mobilizados para a festa quando a pandemia obrigou o cancelamento. Convites já tinham sido disparados sob orientação da curadora Fernanda Diamant, que pediu demissão em agosto.

Entre os 22 convidados da festa virtual, 14 foram definidos pela antiga curadoria, que não foi substituída. E eles tiveram um púlpito democrático para milhares de pessoas, com a vantagem de que ninguém precisou pagar ingresso, hospedagem, ou correr para pegar um bom lugar no telão.

O debate de maior público, com Caetano Veloso e Paul B. Preciado na noite de sábado (5), aglutinou 9.471 pessoas só no horário agendado para a primeira transmissão, entre YouTube e Facebook —a conversa já estava gravada.

As outras mesas ficaram na casa de um ou dois milhares, com destaque para a de Chigozie Obioma e Itamar Vieira Junior, com 3.694 espectadores ao vivo, e a abertura de Bernardine Evaristo e Stephanie Borges, com 3.098.

A Flip mostrou na seleção que continua afiada numa das práticas que, quando dão certo, justificam o prestígio e a própria existência do festival —a combinação fina entre autores de origens diferentes.

Foram iluminados os contatos entre escritores talentosos como Obioma e Vieira Junior, que dão valor precioso à ancestralidade africana; Pilar Quintana e Ana Paula Maia, que criam literaturas brutais por meios diferentes; Jeferson Tenório e Regina Porter, que elaboram conflitos de famílias negras com sofisticação.

E estava lá também um certo ar de renovação, que procura dar a cada Flip sua própria identidade. A dissidência política e de gênero expressa nas conversas de Danez Smith e Jota Mombaça, de Caetano e Preciado​ e no arrojado ícone de Eileen Myles refletem maneiras radicais e libertadoras de estar no mundo e criar arte.

Mas tudo isso teve o ar inevitável de um rascunho de uma Flip que poderia ter sido.

É evidente que ver performers como Smith e Mombaça presencialmente seria uma experiência mais contagiante, a despeito da alta qualidade de seus discursos virtuais.

A glória de Evaristo, recém-premiada com o Booker por um dos grandes livros do ano, seria mais palpável não houvesse a distância asséptica entre o espectador e o confinamento britânico da escritora.

Sabemos que a experiência de uma Flip vai muito além de assistir a mesas. Quarentenada, ela priva os amantes de literatura de prazeres como flanar entre as casas da programação paralela —mais plurais a cada ano—, encontrar amigos e ídolos nas ruas pedregosas de Paraty e comprar obras por impulso na livraria.

A mistura do debate literário com a poesia e a música das ruas é um traço indissociável da Flip. Forçada pelas circunstâncias a prescindir de tudo isso, esta edição acabou agridoce, disforme, uma representação robótica da experiência verdadeira.

Evaristo terminou sua fala, na mesa de abertura, dizendo “espero ir ao Brasil nos próximos anos”. Foi uma demonstração, mesmo que não intencional, dessa sensação de incompletude. Quem sabe 2021 possa voltar a reunir os já unidos pela paixão literária.

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