Descrição de chapéu Televisão

Novela censurada por Collor ressurge na internet e levanta série de dúvidas

'O Marajá', da TV Manchete, estava inédita desde 1993, e canal no YouTube que conseguiu fitas pode ter conexões com Brasília

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Ilustração mostra em frente a um muro de tijolinhos, há uma tv antiga, abaixo dela um videocassete. Em volta, no chão diversas fitas VHS, caixas de papelão, teias de aranha, rolo de película e papéis. Centralizado, uma luza verde, como se viesse de uma porta. Uma sobra de homem fumando é projetada no chão. A fumaça passa por todo o ambiente.

Ilustração para a reportagem sobre a novela 'O Marajá', censurada durante o governo Collor Carolina Daffara

São Paulo

No 30º aniversário do impeachment de Fernando Collor, paira o mistério sobre uma novela que retratava aquele episódio político e foi censurada no dia da estreia, em 1993. "O Marajá", da extinta TV Manchete, com Julia Lemmertz e Alexandre Borges, se tornou então a única telenovela proibida em tempos democráticos na história do Brasil.

Dois acontecimentos recentes reavivaram esse trauma e são enigmáticos. Um deles foi a publicação no YouTube do primeiro capítulo da novela e de trechos do segundo, num total de quase uma hora de conteúdo. Até então a novela permanecia inédita, com só algumas cenas exibidas num documentário sobre o jornalista Fernando Barbosa Lima, que foi diretor da Manchete. O primeiro capítulo e os trechos do segundo foram postados em janeiro pelo Canal Memória, que resgata conteúdos raros da televisão.

Ilustração mostra em frente a um muro de tijolinhos, há uma tv antiga, abaixo dela um videocassete. Em volta, no chão diversas fitas VHS, caixas de papelão, teias de aranha, rolo de película e papéis. Centralizado, uma luza verde, como se viesse de uma porta. Uma sobra de homem fumando é projetada no chão. A fumaça passa por todo o ambiente.
Ilustração para reportagem sobre a novela 'O Marajá' - Carolina Daffara

Não há clareza sobre a origem do material, e as descrições dos vídeos afirmam apenas que foi recuperado em 2014 no acervo de um ator que trabalhou na novela. "Preferimos preservar sua identidade", diz o texto postado pelo canal, que também afirma ter encontrado quatro fitas da novela, numeradas em sequência, sem o nome da obra e apenas com uma etiqueta em que está escrito "Finalizado".

Cercados pelo risco de processos judiciais por cobrança de direitos autorais, os responsáveis pelo canal não se identificam no YouTube, tampouco respondem com mais detalhes a perguntas de fãs ou a pedidos de entrevistas pelo email disponível no site. A reportagem enviou mensagem para canalmemoria.tv@gmail.com, e não houve resposta.

O mais intrigante desse resgate, que já teve mais de 40 mil visualizações, é que ele se deu pouco depois de outro fato cercado de perguntas sem respostas —o leilão judicial que vendeu, em outubro do ano passado, fitas de novelas e de outros programas da Manchete, entre elas as da histórica "Pantanal", que tem agora um remake no ar na TV Globo.

A TV Manchete foi fundada em 1983 por Adolpho Bloch, dono do grupo que editava a famosa revista Manchete. Sua história traz sucessos como o lançamento de Xuxa e de Angélica como apresentadoras, uma forte programação jornalística e uma teledramaturgia ousada, que chegava a incomodar a liderança da Globo nos números do Ibope.

Além de "Pantanal", de 1990, que se tornou um marco por romper com a linguagem padrão das telenovelas, apresentando longas sequências contemplativas de paisagens, várias outras tramas chegaram a fazer sucesso na emissora então novata.

Entre elas estavam "Ana Raio e Zé Trovão", de 1990, "Kananga do Japão", de 1989, "Xica da Silva", de 1996, e "Dona Beija", de 1986 —esta última terá um remake exibido pela HBO Max.

Isso não impediu, no entanto, que a Manchete se atolasse em dívidas e terminasse de forma melancólica, envolvida em disputas judiciais e greves, até a falência, em 1999.

A massa falida da Manchete, ou seja, seu conjunto de bens administrados judicialmente para o pagamento das dívidas, vendeu em leilão, em outubro de 2021, por R$ 500,5 mil, cerca de 25 mil fitas de programas da emissora, dentre as quais estavam os capítulos censurados de "O Marajá". A Faro Leilões, responsável pela negociação, que ocorreu online, não divulgou, à época, o nome do comprador, o que suscitou uma série de especulações entre ex-funcionários da Manchete sobre sua identidade, inclusive a de que seria o empresário bolsonarista Luciano Hang, que estaria interessado em lançar uma TV com o apoio do governo.

A reportagem teve acesso ao processo judicial da massa falida, no qual consta o leilão com o nome do comprador. O lote um vendeu a marca da Manchete por R$ 200,5 mil para Cláudio Wanderley Carvalho. Ele também arrematou o lote dois, das telenovelas, por R$ 240 mil. Já o lote três, com fitas de telejornais, programas infantis e outros, foi comprado, por R$ 60 mil, por Fernando Carvalho Vilela. Embora sejam dois nomes diferentes, ambos deram à Justiça o mesmo endereço, no Rio de Janeiro.

Cláudio afirmou que Fernando é seu sobrinho, que ambos são compradores profissionais de leilão e que arremataram o material da Manchete "para um amigo". No primeiro contato da reportagem, Cláudio disse que consultaria o verdadeiro comprador para saber se poderia revelar a sua identidade. Numa segunda ligação, afirmou que não poderia fazer isso e negou que fosse Luciano Hang.

Também não quis responder sobre o propósito da compra, falou apenas que o "amigo disse que daria dinheiro no futuro". Consultada pela reportagem, a assessoria de Hang também negou que o empresário esteja envolvido na compra do leilão da Manchete, além de desmentir o interesse em fundar uma TV. "Nunca houve nada nesse sentido."

A reportagem também entrou em contato com o advogado Manoel Antonio Angulo Lopez, que é síndico dativo da massa falida da Manchete, ou seja, foi nomeado pelo juiz para administrar os bens que eram da emissora. Ele afirmou não ter conhecimento sobre o verdadeiro comprador do leilão e disse não acreditar que seja Hang. Lopez explicou que o leilão ainda precisa ser homologado pelo juiz e que, portanto, o material não foi entregue ao comprador.

As fitas, segundo o advogado, estão num depósito em São Paulo, depois de terem sido resgatadas da antiga sede da TV no Rio, onde estavam armazenadas sob forte calor. O material, de acordo com Lopez, está deteriorado, "a qualidade é péssima", e o custo para a sua recuperação seria elevado. Além disso, há a necessidade de se transpor os formatos antigos para o digital. O capítulo de "O Marajá" postado no YouTube, segundo a descrição do vídeo, estava em fita Betacam, uma tecnologia obsoleta.

Outro ponto que torna o interesse do comprador um mistério —a compra, segundo Lopez, diz respeito ao material físico, não às obras em si. Quem comprou as fitas não poderá exibir os programas e as novelas, a menos que pague por seus direitos autorais, tendo, para isso, que ir atrás de autores, atores et cetera, ou de seus herdeiros.

"Pantanal", por exemplo, já foi motivo de disputa judicial envolvendo os direitos autorais. Em 2008, o SBT exibiu uma reprise da novela após ter comprado fitas adquiridas em leilão. Em 2016, a emissora foi condenada a indenizar o autor, Benedito Ruy Barbosa. Ele havia vendido os direitos da obra à Globo, que agora leva ao ar seu remake no horário nobre.

Imagem mostra muro de tijolinhos com um pôster da novela "O Marajá", abaixo diversos objetos pequenos como caixas de papel, fitas VHS, um carro de polícia dos anos 90 e o "Véio da Havan". Do lado direito, em maior escala um homem de chapéu e roupa de detetive fuma um cigarro. A fumaça passa por toda a imagem.
Ilustração para reportagem sobre a novela 'O Marajá' - Carolina Daffara

Se comprar as fitas não dá direito à exibição dos conteúdos e, além disso, a restauração delas será caríssima, qual é o interesse do comprador? Também é difícil entender a venda da marca feita por esse leilão. Isso porque, segundo Lopez, a marca Manchete já foi vendida antes. O advogado diz que foi negociado agora só o famoso logotipo no formato da letra "M". Com que finalidade o comprador misterioso pagou por isso?

Além desse enredo rocambolesco em torno das fitas misteriosas de "O Marajá", outra história digna de novela é a dos bastidores de sua produção e a da censura.

"O Marajá" misturava jornalismo com teledramaturgia, com críticas diretas ao ex-presidente Fernando Collor e aos escândalos do esquema de corrupção envolvendo PC Farias, tesoureiro de sua campanha. Na história, Collor era Elle, interpretado por um sósia, o ator Hélcio Magalhães, que havia feito o papel do presidente um uma passeata a favor do impeachment, organizada por estudantes da UNE, em São Paulo.

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Elenco de 'O Marajá', nova da extinta TV Manchete que nunca foi ao ar - Divulgação

A Manchete já agonizava financeiramente, e a novela foi gravada com uma câmera e menos de 20 atores. A sala de Elle era a de Adolpho Bloch, que emprestou sua Mercedes para cenas. Não havia dinheiro para dublês, e o sósia de Collor se acidentou em duas gravações, como contou no livro "Rede Manchete – Aconteceu Virou História", de Elmo Francfort. Em uma delas, uma moto pesada caiu sobre ele. Em outra, o ator, vestido de Super-Homem, pulou de uma pedra e machucou o joelho e o tornozelo. Um capítulo de "O Marajá", apontou reportagem deste jornal à época, custava dez vezes menos do que o de uma novela da Globo.

Na história, Julia Lemmertz era uma repórter que desvendava os esquemas de corrupção do governo Elle e seu plano mirabolante para permanecer no poder por 30 anos, até 2020. A novela intercalava cenas dos personagens a imagens reais do presidente e depoimentos de personalidades. Entre as sequência fictícias sobre o plano de golpe de Estado de Elle, por exemplo, surgia o senador Renan Calheiros afirmando que Collor planejava "jogar fora a Constituição e se manter no poder".

Os atores Alexandre Borges e Julia Lemmertz em cena de 'O Marajá', novela censurada em 1993 - Reprodução

Um narrador, interpretado por Luiz Armando Queiroz, e uma fofoqueira vivida por Ângela Leal costuravam realidade e ficção. Por um lado, soa ousado, por outro, fica evidente a precariedade da produção. "A fofoqueira narrava aquilo que não podia ser gravado por falta de recursos", conta o diretor e consultor de TV Márcio Tavolari, que foi um dos roteiristas da sinopse de "O Marajá". "O uso de só uma câmera também tem a ver com isso. Não havia equipamento, e eram poucos os profissionais para gravar e editar. Não era uma questão de linguagem, mas de necessidade."

Apesar disso, "O Marajá" era a esperança de recuperação da emissora e foi traumática a notícia de que Collor havia conseguido uma liminar para impedir sua exibição. A informação chegou durante a festa de lançamento da novela, na sede da TV, no Rio, pouco antes do horário marcado para a estreia, às 21h30 de 26 de julho de 1993.

Cartaz da novela 'O Marajá', da TV Manchete, proibida em 1993 - Reprodução

Tavolari conta que um oficial de Justiça e policiais federais entraram na emissora exigindo as fitas da novela e outros materiais relacionados à produção. "Coube a mim avisar o Marcos Schechtmann [diretor da novela]. Os policiais pegaram as fitas que estavam para ser exibidas, e foi uma correria para esconder as cópias", disse a esta repórter. "Eu saí juntando páginas do roteiro, mas um policial percebeu e ordenou que eu entregasse tudo. Recusei e levei dele um tapa na cara", ele relembra. "Foi uma violência."

Cerca de 30 capítulos estavam gravados, e a emissora tentou reverter a liminar durante três meses para poder exibir a novela. Mas a liberação só viria em 1994, levando Bloch a desistir da exibição por medo de novas represálias e por considerar que já havia passado o momento propício para levar ao ar aquela temática.

Uma nova novela foi gravada às pressas, com a mesma equipe de produção e o mesmo elenco, inclusive o sósia de Collor, que pintou o cabelo de ruivo e deixou a barba crescer para se diferenciar do ex-presidente. Menos de cinco meses depois, estreou "Guerra sem Fim". Proibição de uma novela na íntegra só havia ocorrido na ditadura militar, nesse caso pela censura do Estado. Em 1975, "Roque Santeiro", da Globo, foi a primeira telenovela inteiramente vetada da história do país, que só seria liberada após a saída dos militares. Em 1976, veto semelhante se deu com "Despedida de Casado".

Após o fim da ditadura, a teledramaturgia seguiria sofrendo cortes parciais determinados pelo Estado, como foi o caso da versão de 1985 de "Roque Santeiro". A Constituição de 1988 determinou o fim da censura governamental, mas a proibição a "O Marajá", em 1993, evidenciava outros tentáculos do cerceamento à liberdade de expressão, como o sufocamento econômico e o poder judiciário no papel de censores.

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