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'True crimes' escancaram os prazeres e os riscos de julgar a vida alheia

Onda de séries, filmes, livros e podcasts sobre crimes ganha novo capítulo com produção sobre morte de Daniella Perez

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De um lado, Guilherme de Pádua diz que era assediado por Daniella Perez, o que ameaçava seu casamento. De outro, o elenco de "De Corpo e Alma" diz que era o ator que assediava a atriz em busca de protagonismo na novela da qual sua mãe, Gloria Perez, era autora.

De um lado, Suzane von Richthofen é impulsiva, briguenta, viciada em maconha e vítima de estupros do pai. De outro, sua família vive um conto de fadas arruinado pela chegada de Daniel Cravinhos, que a obriga a se drogar e a instiga a brigar com os pais.

Laudo apontando as estocadas que mataram Daniella Perez e que aparece na minissérie documental 'Pacto Brutal'
Laudo apontando as perfurações que mataram Daniella Perez, em cena da minissérie 'Pacto Brutal' - Divulgação

Uma nova tendência da cultura pop, as histórias de crimes reais —ou "true crimes", como são conhecidas— nos levam aos tribunais com um lugar garantido não na plateia, mas na cadeira do juiz, para o que mais gostamos de fazer –julgar a vida alheia.

É difícil assistir a "Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez", série que estreia na HBO Max na quinta-feira, dia 21, sem chegar ao fim com um mesmo veredito sobre o caso —igual ao de Gloria Perez, provavelmente, já que a produção, que tem como fio condutor um depoimento da roteirista, não ouve os condenados nem seus advogados.

É a mesma proposta dos filmes sobre o caso Richthofen, "A Menina que Matou os Pais" e "O Menino que Matou Meus Pais", lançados pelo Prime Video, e de outros tantos que estão por vir, como o do caso Isabella Nardoni, ainda sem previsão de estreia.

A "gamificação" sob a qual estamos cada vez mais submetidos, nas redes sociais e nas escolas, parece ser a chave do sucesso dos "true crimes".

É uma experiência que, entretanto, corre o risco de se deixar levar pelo maniqueísmo tão saboroso e palatável sobre o qual se constroem histórias tão antigas como a de Adão e Eva e, com isso, reforçar estigmas sociais.

É um deslize do qual "Pacto Brutal" não consegue escapar. O seriado lança uma cortina de fumaça em torno da sexualidade de Guilherme de Pádua, que antes de ingressar na TV Globo tinha feito parte de um musical de uma travesti e de um filme sobre michês. A produção ainda pinta Paula Thomaz, sua mulher, como alguém que, relegada a viver às margens do marido, teria matado Perez como parte de um ritual satânico.

Num país como o Brasil, escancaradamente homofóbico, machista e preconceituoso contra religiões de matriz africana, os documentaristas não precisavam de mais nada para moldar a opinião pública contra o casal, estratégia que também foi adotada pelos advogados da vítima no tribunal do júri.

Se é que é preciso dizer, são críticas que não têm como objetivo questionar a culpabilidade de ambos. Para isso, não há nem sequer espaço para discussão, visto que a Justiça os condenou pelo assassinato da atriz —mas pelo crime, e não por Guilherme de Pádua supostamente ser homossexual ou Paula Thomaz supostamente fazer parte de uma religião que foge ao cristianismo.

Mulher branca de cabelos loiros fala
A roteirista Gloria Perez, filmada na minissérie documental 'Pacto Brutal', sobre o assassinato de sua filha, Daniella Perez - Divulgação

Por outro lado, se crimes são o retrato mais cabal que temos de uma sociedade, os "true crimes", quando bem-feitos, podem levar a reflexões oportunas e escancarar as falhas da Justiça, da polícia e da mídia, além de levar à reabertura de processos para a revisão de julgamentos injustos.

Não é o caso de nenhum programa policial como "Linha Direta", que geram medo e levam a população a ver o encarceramento em massa ou a pena de morte, por exemplo, como solução para os problemas que batem às suas portas.

Mas é o caso de "Praia dos Ossos", um podcast da Rádio Novelo sobre como a socialite Ângela Diniz, morta a tiros em 1976 pelo namorado, Doca Street, foi de vítima à culpada pelo próprio assassinato sob influência da polícia e de jornais, que estampavam manchetes como "a infelicidade de uma mulher destruiu um lar", levando o réu a sair do tribunal não só inocentado como ovacionado por fãs.

"O Caso Evandro", que começou como podcast para depois ganhar as telas e as páginas, é outro exemplo. Seu autor, o jornalista Ivan Mizanzuk, não só chegou mais próximo do que a polícia de elucidar o caso, mas descobriu que as duas condenadas pelo assassinato, por politicagem, tinham sido torturadas para confessar um crime que não cometeram. Levadas à prisão, elas foram acusadas de bruxaria pela imprensa, que reproduzia o que as autoridades diziam sem questionamentos.

Eis duas provas de como toda história tem no mínimo três versões —a minha, a sua e a que realmente aconteceu—, uma constante que, por mais clichê que pareça, pode ser um bom guia entre os "true crimes" que vemos, escutamos ou lemos.

Pacto Brutal - O Assassinato de Daniella Perez

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