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'Lições', de Ian McEwan, é novelão que não sabe ler história da atualidade

Livro faz painel de traumas coletivos das últimas décadas de forma aleatória e possivelmente reacionária

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Alcir Pécora

Professor titular de teoria literária da Unicamp

Lições

  • Preço R$ 119,90 (568 págs.); R$ 49,90 (ebook)
  • Autoria Ian McEwan
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Jorio Dauster

À medida que avança a leitura do grosso volume de "Lições", de Ian McEwan, cresce a impressão de que se trata de um hiper-romance, com links para todas as direções.

Uma delas, por exemplo, incorpora à narrativa os eventos históricos mais notáveis desde a Segunda Guerra até hoje, o que inclui a cisão da Alemanha; a Guerra Fria e a crise dos mísseis de Cuba; o fim do Estado de bem-estar social; a ascensão do neoliberalismo globalizado com Reagan e Thatcher; a queda do Muro de Berlim; o 11 de Setembro; a eleição de Trump e, depois, o ataque ao Capitólio; o brexit; a pandemia e os lockdowns, até chegar à Guerra da Ucrânia.

O romancista britânico Ian McEwan - Damien Grenon/AFP

A intriga central, por sua vez, está conectada com alguns dos traumas pessoais e coletivos mais em evidência nos tempos que correm, como as agressões físicas domésticas; o sentimento de rejeição infantil; o assédio e estupro que o protagonista sofre de sua professora de piano, desde os 11 anos; e, ainda, já adulto, o abandono da casa pela mulher, que o deixa com um filho de poucos meses para criar sozinho, a fim de que ela possa se dedicar à carreira de escritora.

Com uma abrangência temporal tão larga, o romance naturalmente carrega dentro de si pequenos núcleos dramáticos associados a encontros ou reencontros, comoventes e constrangedores, como os que ocorrem entre o protagonista e a mulher fugitiva, entre ele e a professora pedófila, ou com amigos da Alemanha Oriental que perdera de vista.

Não faltam também conexões para momentos sentimentais, mais associados à morte do que ao amor romântico, como a indefectível irrupção de um câncer súbito a arruinar um período de morna felicidade na vida medíocre do protagonista.

E, de fato, nunca há grande arrebatamento em meio aos inúmeros eventos relatados. Mesmo os que poderiam ser mais pesados, como o estupro de vulnerável ou o abandono do recém-nascido, são descritos sob uma névoa de anotação conformista no diário de um observador distante.

A única inquietação que cresce ao longo do romance, talvez involuntariamente, é a de uma espécie de "tese inversa", potencialmente reacionária, a despeito das tendências trabalhistas do protagonista. É o homem, e não a mulher, que sofre o ataque pedófilo, assim como é o homem, e não a mulher, que é deixado só com o filho para criar, em flagrante oposição ao que é mais usual acontecer.

Dessas duas inversões, se seguem duas linhas de ponderação, não muito desenvolvidas. A primeira faz com que o abuso infantil, sem deixar de ser encarado como crime, conviva com uma zona obscura de amor, mais ou menos na linha da síndrome de Estocolmo, quando a vítima se apaixona pelo algoz. A segunda trata de pesar o custo emocional do abandono da criança na balança do talento literário da mãe, que, no caso, é o da "melhor escritora da Europa".

Dessas ponderações emergem, portanto, dois atenuantes dos traumas —o amor e a estética. Não são argumentos programáticos ou mesmo enfáticos, mas eles existem e operam dentro da estrutura de longa duração do romance.

O escritor britânico Ian McEwan durante apresentação no Fronteiras do Pensamento, realizado no teatro Cetip, no complexo Tomie Ohtake, em 2016 - Adriano Vizoni/Folhapress

Ainda a propósito da estrutura romanesca, é certo que ela não chega a ter unidade ou tensão narrativa continuada. Além disso, se estende por muitos episódios diferentes, que vão se apresentando um a um —alguns tardiamente e ex abrupto, como o caso da descoberta de um irmão desconhecido, entregue secretamente pelos pais para doação—, e que depois, por vezes, são esquecidos ou abandonados. Esse conjunto tende a favorecer no livro mais um efeito de novelão antigo, do que de romance desconstruído.

Em termos mais atuais, o calhamaço tem algo de roteiro seriado, com várias gerações de personagens que se sucedem pendurados num fio de intriga, com muitos acontecimentos que nem sempre retornam ao núcleo central, dentro de uma história contrafactual linear, apenas com pequenos saltos e recuos temporais.

De tudo, resulta que "Lições" ensina sobretudo a impotência da literatura para interpretar a história contemporânea, se reduzindo a eventos que carregam as histórias pessoais e coletivas para um lado e outro, de forma aleatória —ou, pior, indiferente.

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