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Esquire, aos 90, marcou a era mais romântica do jornalismo de revista

Textos antigos de Gay Talese, Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald ainda brilham com criatividade e irreverência

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São Paulo

Nunca antes uma gripezinha deve ter rendido tanto assunto. Gay Talese recebeu a missão de fazer um perfil de Frank Sinatra, mas o personagem estava em uma fase azeda, não queria dar entrevista.

Para resolver o problema, o jornalista foi pelas beiradas, entrevistou o entorno do cantor e publicou "Frank Sinatra Está Gripado" em 1966, na revista Esquire. Sem qualquer colaboração do artista.

O lutador Muhammad Ali, fotografado em imagem que faz referência a São Sebastião, em capa da Esquire, em 1967
O lutador Muhammad Ali, fotografado em imagem que faz referência a são Sebastião, em capa da Esquire, em 1967 - Reprodução

O texto virou uma das reportagens mais cultuadas da história e é um dos marcos do que se convencionou chamar de novo jornalismo, movimento de repórteres que ambicionavam elevar os relatos de não ficção ao status da literatura (e que, é claro, nunca tinham lido Euclides da Cunha).

Não à toa o perfil de Sinatra saiu na Esquire. A publicação, que completa 90 anos, foi um dos principais espaços de inovação editorial nos Estados Unidos e um dos abrigos do movimento.

A Esquire marca a era romântica do jornalismo de revista. No seu auge, era como se difundisse uma imagem de que, nas revistas, os repórteres usavam talheres de prata —enquanto nos jornais, é claro, as pessoas estavam comendo com as mãos.

Foi assim desde o começo, em 1933. A Esquire era —e ainda é— uma revista masculina, onde os homens iam buscar dicas sobre nós de gravata ou como escolher um uísque, mas também prometia elevação intelectual aos leitores.

A primeira edição já trazia um ensaio escrito por Ernest Hemingway em Cuba, que depois serviria de base para o romance "O Velho e o Mar". Também havia textos de Dashiell Hammett e John dos Passos, entre outros nomes.

Fosse só o novo jornalismo, o legado da Esquire já seria importante, mas talvez fosse menos sólido —hoje, afinal, já existem questionamentos sobre a veracidade no trabalho de alguns daqueles profissionais. Mas a história da revista também tem nos escritores um de seus pilares.

Por um lado, a Esquire se consolidou como um espaço importante para divulgar a ficção americana —F. Scott Fitzgerald, por exemplo, publicou 43 textos lá nos sete anos antes de sua morte. Por outro, a revista também levou autores de literatura a se aventurar na não ficção.

Foi assim que Jean Genet foi cobrir a Convenção Democrata de 1968, viu os protestos contra a Guerra do Vietnã e concluiu que os Estados Unidos deveriam ser reduzidos a pó para o bem de todos.

Não foi pequeno o salto que a publicação quis dar. Quando a Esquire surgiu, o mercado via nas revistas veículos essencialmente femininos —e era para esse segmento que os anunciantes direcionavam suas campanhas de publicidade.

Por isso, na primeira edição, o chefe da Esquire reclamava que as revistas da época ofereciam conteúdo para homens por baixo da mesa, como quem dá restos a um cão, e dizia que a revista queria se tornar "o denominador comum dos interesses masculinos".

O dilema era o mesmo em outras publicações. Por exemplo, a Senhor, revista brasileira dos anos 1960 em partes inspirada na Esquire, estreou com uma curiosa carta do editor. Nela, o editor se desculpava por criar uma revista masculina no Brasil e tentava convencer as mulheres a acompanhar as edições.

(Se der sorte de encontrar edições da Senhor em sebos, agarre todas. O livro com o melhor da revista, organizado por Ruy Castro, está esgotadíssimo.)

Uma revista para cavalheiros poderia ter naufragado com a contracultura dos anos 1960, o movimento pelos direitos civis e a ascensão do feminismo. Mas a Esquire se empenhou em acompanhar o espírito daquele tempo.

Prova disso são as capas memoráveis da revista naquela década, que muitas vezes representavam tomadas de posição.

Foi assim que a Esquire estampou o lutador Sonny Liston como um Papai Noel negro, no Natal de 1963, o que levou a um prejuízo com o cancelamento de anúncios. E, em 1967, a revista mostrou um Muhammad Ali flechado como um mártir, à imagem de são Sebastião —no mesmo mês, Ali tinha se recusado a lutar no Vietnã e seria preso por isso.

As capas, que já foram até tema de exposição, eram concebidas na agência de George Lois, um dos grandes nomes da publicidade americana. Lois tinha sido convidado por Harold Hayes, o editor mais lembrado da história da Esquire, que concordou em não interferir nas criações —o que não é comum no jornalismo.

Dessa forma, mais do que apenas relatar as mudanças culturais de seu tempo, a Esquire foi um personagem dessas mudanças. Quem passear pelo seu arquivo vai ver que seu conteúdo ainda brilha de irreverência e criatividade.

Para quem não conhece, a Esquire continua em circulação aos 90 anos —e os debates culturais para travar ainda estão aí. Não é só a nova onda do feminismo e as redes sociais, mas também dos debates sobre a masculinidade, com gurus "red pill" e jovens "woke" em batalha. Uma revista que nasceu pensando em atender finos cavalheiros ainda está aqui na era do banheiro sem gênero.

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